4 movimentos que estão transformando a inclusão racial na arquitetura

Se tem algo que aprendi observando a arquitetura brasileira nos últimos anos é que o movimento por equidade racial não é silencioso. Pelo contrário, é vibrante, potente e cada vez mais visível. Ele começa nas inquietações individuais, no incômodo íntimo de perceber que faltavam corpos, vozes e narrativas como as nossas nos espaços de criação. E rapidamente se transforma em algo maior. Se transforma em ação, em articulação e em presença. Isso se materializa nos escritórios que pessoas negras têm construído, nas mostras em que temos aparecido, nas mesas em que passamos a sentar e nos projetos que agora carregam nossas estéticas e perspectivas.
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É verdade que avançamos. Estamos em mais notícias, mais eventos, mais debates. Ao mesmo tempo, sabemos que ainda faltam passos largos para que essa presença se torne norma e não exceção. A equidade real ainda não foi alcançada. E é justamente nesse intervalo entre o que conquistamos e o que ainda precisamos alcançar que as ações afirmativas atuam como pilares estruturais.
No dia 15 de novembro, em um evento, pude ver de perto como esses pilares se conectam. O encontro reuniu quatro iniciativas que hoje são fundamentais na luta por equidade racial na arquitetura: Sala Preta Mentoria, Arquitetas Negras, Arquitetura D’Preto e o Programa Aproxima. Cada uma, ao seu modo, nasceu da mesma chama inicial: a inquietação de perceber que não era possível continuar aceitando um mercado onde pessoas negras apareciam apenas como exceção.
1. Arquitetas Negras
Fundadoras do Arquitetas Negras e Cambará em ordem: Kaísa Isabel, Sheroll Martins, Audrey Carolini, Vilma Patrícia e Gabriela de Matos
Vic/Divulgação
O movimento pela equidade racial na arquitetura brasileira encontrou seu ponto de partida mais potente nas mãos das arquitetas negras. Em 2018, Gabriela de Matos criou o projeto Arquitetas Negras, um mapeamento que deu nome, rosto e existência a profissionais que o mercado insistia em não enxergar. No mesmo período, Audrey Carolini articulava em São Paulo um coletivo de mulheres negras arquitetas. Quando se encontraram, esses esforços individuais se tornaram um movimento nacional. Hoje, o mapeamento reúne mais de 800 profissionais e é impossível falar de inclusão na arquitetura sem citar esse trabalho pioneiro.
Esse avanço se tornou ainda maior em 2023, com a criação do Cambará Instituto de Fomento à Arquitetura Afrobrasileira, que incorporou oficialmente o Arquitetas Negras. O instituto nasce como plataforma de pesquisa, formação e ação política, ampliando o impacto dessas mulheres no setor. Sua estreia aconteceu com OCO, obra apresentada na 14ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, criada durante uma residência no Cerbambu, em Ravena, Minas Gerais, onde dez arquitetas negras desenvolveram, ao lado do mestre Lúcio Ventania, novas possibilidades técnicas e simbólicas do bambu.
Hoje, o Cambará é coordenado por Gabriela de Matos e Audrey Carolini, com Kaísa Isabel, Sheroll Martins e Vilma Patrícia. Juntas, elas transformam inquietações pessoais em projeto coletivo e estruturado. O instituto mostra que a arquitetura negra brasileira não é apenas resistência, é proposição, inovação e futuro.
2. Arquitetura D’preto
Pedro Rubens apresentando os coordenadores do Arquitetura D’Preto
João Gabriel/Acervo Pessoal
O Arquitetura D’Preto surgiu a partir de uma inquietação de Pedro Rubens, ainda em 2019, durante sua graduação na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisando arquitetura afro-brasileira, ele se perguntava por que era tão difícil encontrar referências de arquitetos negros no Brasil. A ausência não era falta de produção, mas falta de visibilidade. Essa percepção o levou a criar, em junho de 2020, uma página no Instagram que rapidamente se transformou em movimento.
Hoje, o Arquitetura D’Preto reúne coordenações regionais em 13 estados do país e também em Portugal. Essa estrutura descentralizada permite fortalecer profissionais negros nos mais diversos territórios, ampliando oportunidades e criando conexões que antes simplesmente não existiam. O movimento se tornou um ponto de apoio, referência e valorização num mercado que ainda é profundamente excludente.
O Arquitetura D’Preto fomenta debates urgentes sobre raça, equidade e representatividade na arquitetura e na construção civil por meio de eventos, mentorias, rodas de conversa e ações educativas. Estimula uma mudança estrutural no setor, aproximando clientes, profissionais e estudantes em torno de uma pauta que precisa ser contínua.
O impacto ultrapassa o campo profissional. O movimento toca dimensões sociais e culturais importantes ao dar visibilidade para arquitetos negros e incentivar que o mercado reconheça a diversidade como um valor e não como exceção.
3. Sala Preta – Mentoria
Encontro virtual da Sala Preta – Mentoria
João Gabriel/Acervo Pessoal
Criada em 2024 por mim, o arquiteto João Gabriel, a Sala Preta – Mentoria nasceu como uma resposta às dificuldades enfrentadas por arquitetos negros recém-formados. A ideia surgiu após uma conversa com um cliente que relatou a dificuldade de encontrar arquitetos negros que atendessem às suas necessidades no mercado. Isso me levou a perceber que a qualificação profissional era uma forma concreta de equilibrar o sistema e criar oportunidades mais justas e acessíveis.
Com turmas de 25 participantes, a Sala Preta – Mentoria já impactou duas turmas, totalizando 50 alunos. O programa aborda temas essenciais como marketing, precificação, captação de clientes e estruturação de negócios, preparando profissionais para os desafios do mercado. Um destaque é o quadro Conversa na Sala, no qual arquitetos experientes compartilham suas trajetórias, inspirando e orientando os participantes.
Mais do que um programa de formação, a Sala Preta tornou-se um espaço de acolhimento e troca, onde arquitetos negros de diferentes regiões podem compartilhar vivências e construir redes de apoio. Um dos objetivos centrais é descentralizar o mercado de arquitetura, ampliando a visibilidade de profissionais fora do eixo Sudeste, com especial atenção ao Norte, Nordeste e cidades do interior.
As aulas, realizadas remotamente, ampliam o alcance do projeto, conectando profissionais de todo o Brasil. A Sala Preta – Mentoria é um movimento que vai além da capacitação técnica, sendo um agente de transformação, inclusão e justiça no mercado da arquitetura brasileira.
4. Programa Aproxima
Membros do Programa Aproxima ao lado da fundadora Caroline Martins (ao meio)
Divulgação
O Programa Aproxima é uma iniciativa de estágio rotativo voltada para alunos pretos, pardos e indígenas do segundo ao quarto ano de cursos de arquitetura. Estruturado em parceria com escritórios de arquitetura, indústrias, incorporadoras, construtoras e o setor público, o programa oferece uma plataforma de capacitação, desenvolvimento cultural e inserção competitiva no mercado de trabalho.
A ideia surgiu com Caroline Martins, que atua há 11 anos com gestão de pessoas no escritório FGMF. A partir de suas experiências, ela percebeu a necessidade de ampliar a diversidade e propôs um programa que, inicialmente, seria interno à empresa. No entanto, conforme o projeto cresceu, ficou evidente a possibilidade de expansão, envolvendo outros escritórios e companhias do setor.
Hoje, o Aproxima não é mais exclusivo da FGMF, mas sim uma iniciativa do setor na totalidade. Uma associação sem fins lucrativos foi criada para coordená-lo, contando com o patrocínio, apoio e participação de inúmeras empresas. O programa tem a expectativa de recrutar mais 50 no próximo semestre, buscando criar um modelo replicável e escalável para inclusão étnico-racial em outras áreas profissionais.
A associação, que possui um conselho majoritariamente negro, planeja desenvolver, no futuro, outros programas voltados à promoção da diversidade no mercado de trabalho.
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Essas iniciativas representam mais do que esforços individuais; são movimentos coletivos que estão redesenhando o futuro da arquitetura no Brasil. Cada projeto, à sua maneira, não apenas promove inclusão e diversidade, mas também desafia estruturas históricas de exclusão, construindo um mercado mais justo, acessível e representativo.
Essas ações juntas são provas de que a transformação é possível quando unimos talentos, vozes e propósitos para criar um setor que reflita verdadeiramente a pluralidade e a riqueza do nosso país.

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