Duas décadas após abrir seu primeiro restaurante, Henrique Fogaça revisita a própria história, fala sobre autenticidade, saúde mental, paternidade e os bastidores de uma cozinha sem máscaras Duas décadas atrás, nascia em São Paulo um restaurante que carregava o nome de um dos elementos mais essenciais da cozinha: o sal. Fundado por Henrique Fogaça em 2005, o Sal Gastronomia consolidou-se como um marco da cena paulistana, ao traduzir em pratos intensos a própria trajetória de seu criador. “Olhar pra trás e ver o Sal completando 20 anos é uma sensação muito forte”, diz. “Teve muita luta, muito suor, altos e baixos. Mas o momento decisivo foi quando entendi que ele precisava ser mais do que um restaurante. Tinha que ter alma, verdade, um reflexo meu.”
Natural de Piracicaba, Fogaça construiu uma carreira à margem dos clichês que moldam a figura do chef celebridade. Enquanto muitos optam por polir suas imagens, ele aposta na crueza como linguagem. São mais de 100 tatuagens, gosto declarado por motos, skate e guitarras distorcidas. Mas também há delicadeza — como no cuidado quase artesanal com que revive pratos do passado no novo menu comemorativo do Sal. “A ideia foi revisitar receitas que marcaram nossa história, com sabor intenso e raízes brasileiras”, explica. “Pratos como a Copa Lombo com farofa de pão e quiabo ou o Risoto de carne seca com queijo coalho sintetizam bem essa identidade.”
Copa Lombo com farofa de pão e quiabo é um dos pratos presentes no menu comemorativo de 20 anos do Sal Gastronomia
Embrasa
Do improviso de um início intuitivo à sofisticação conquistada com o tempo, o Sal tornou-se um “organismo vivo”, como define o próprio Fogaça, sempre em mutação, mas sem jamais trair a própria origem. Em tempos de algoritmos e fórmulas repetidas, ele aposta na cozinha autoral como palco de resistência. “É um espaço de expressão. Cada prato tem uma história, um motivo pra estar ali.”
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E é justamente essa mistura — de força e ternura, de caos e controle, de rock pesado e saladas de figo — que faz de Henrique Fogaça uma figura singular na cena gastronômica brasileira. A seguir, ele faz à Casa Vogue um balanço de sua trajetória:
CV: Henrique, o Sal Gastronomia completou duas décadas de história. Quando você olha para trás, qual foi o momento mais decisivo para o sucesso do restaurante — e o que hoje você entende como a essência que manteve a casa viva por tanto tempo?
Olhar pra trás e ver o Sal completando 20 anos é uma sensação muito forte. Teve muita luta, muito suor, altos e baixos. Mas se eu tivesse que apontar um momento decisivo, foi quando eu entendi que o Sal precisava ser mais do que só um restaurante com comida autoral. Ele tinha que ter alma, verdade — um reflexo meu, da minha história, do que eu acredito.
No começo, era tudo muito intuitivo. Eu cozinhava com garra e com paixão. E isso, de certa forma, virou a identidade da casa. Com o tempo, fui refinando, trazendo mais técnica, estudando, mas sem perder a essência. E a essência, pra mim, é justamente essa: autenticidade. Cozinha com pegada, com raiz, com sentimento. E um ambiente onde a galera se sinta em casa, bem recebida, com arte, um drink caprichado… O Sal é um organismo vivo, e acho que o segredo pra ele ter durado tanto tempo é que ele nunca deixou de se transformar — mas sempre sendo fiel a quem a gente é.
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CV: O menu comemorativo celebra essa história com pratos que marcaram época. Como foi o processo de seleção?
Escolher os pratos para o menu comemorativo foi um processo de resgate e reflexão. A ideia era revisitar receitas que marcaram nossa história e que representam a essência da casa. Temos pratos que carregam a identidade do Sal como Copa Lombo com farofa de pão e quiabo, Risoto de carne seca com queijo coalho e Spaghetti de quinoa com legumes, além da Salada de Figo e o Carpaccio de Bife Ancho. Eles têm sabor intenso, raízes brasileiras e apresentação sem firulas.
Risoto de carne seca com queijo coalho
Embrasa
CV: Em duas décadas de restaurante, o que mudou no paladar do público? E como você enxerga o papel da cozinha autoral no cenário gastronômico atual?
Nesses 20 anos, o paladar do público mudou bastante. Hoje em dia, vejo que ele está muito mais aberto, curioso e também mais informado. A internet ajudou nisso — o acesso à gastronomia se democratizou, e muita gente passou a entender melhor o que está comendo, a origem dos ingredientes, as técnicas. Isso é ótimo, e também exige mais da gente, porque o nível de exigência subiu, o que nos permite estarmos sempre focados em oferecer a melhor experiência.
Em relação à cozinha autoral, eu vejo como uma resistência — no bom sentido. É um espaço de expressão, onde o chef coloca a própria identidade no prato. Num mundo cheio de modismos, de fast food, de fórmulas repetidas, a cozinha autoral tem um papel fundamental: mostrar que ainda existe verdade, criatividade e alma no que a gente faz. No Sal, por exemplo, eu sempre levei isso muito a sério. Cada prato tem uma história, um motivo pra estar ali. E acho que o público sente isso, valoriza essa entrega.
Salão do Sal Gastronomia, na rua Bela Cintra
Embrasa
CV: O universo da alta gastronomia ainda é marcado por hierarquias rígidas e ambientes de alta pressão. Você já esteve dos dois lados da cozinha — como chef e líder. Como enxerga os debates sobre assédio, burnout e saúde mental nos restaurantes?
Esse é um tema muito importante, e eu falo com propriedade porque já vivi isso na pele. A cozinha profissional, principalmente na alta gastronomia, sempre foi um ambiente de muita pressão, hierarquia pesada e cobrança extrema. E, durante muito tempo, isso foi tratado como normal — como se pra ser bom, tinha que sofrer, tinha que aguentar calado. Mas não é bem por aí. Hoje, como líder, tento fazer diferente. Claro que tem cobrança, tem disciplina, mas também tem escuta, tem respeito. A saúde mental precisa ser levada a sério. Um time só rende bem se estiver equilibrado, e isso vale pra qualquer área. O assédio não pode mais ser tolerado. A cultura do medo tem que dar lugar a uma cultura de parceria, de evolução coletiva. Cozinha é trabalho em equipe — se um desaba, o sistema todo desanda.
Acho que a gente, como referência no mercado, tem a responsabilidade de puxar essa mudança. E ela já começou, felizmente. Ainda tem muito a melhorar, mas estamos caminhando.
+ Rodolfo de Santis: “O Nino criou uma nova visão da gastronomia no Brasil”
CV: A sustentabilidade virou uma palavra-chave nos cardápios, mas ainda esbarra em práticas pouco coerentes nos bastidores. Como você vê o real compromisso da gastronomia com sustentabilidade?
Sustentabilidade não pode ser só discurso bonito em cardápio. Tem que ser prática real, diária, desde a escolha dos ingredientes até o descarte do lixo. E isso dá trabalho, custa mais, exige planejamento, por isso muita gente fala, mas poucos fazem de verdade.
No Sal, a gente sempre buscou usar ingredientes da estação, aproveitar melhor os insumos. Não é só por questão ambiental, mas porque também faz sentido pro sabor, pra identidade do prato. Claro, que ainda dá pra melhorar muita coisa. Na gastronomia, que mexe com natureza, com cultura, com gente, não dá mais pra separar sabor de responsabilidade.
CV: Seu percurso vai muito além da cozinha — entre palcos com a banda Oitão, tatuagens, motos, livros e a televisão. Como esses diferentes territórios alimentam sua criação gastronômica?
Sempre tive necessidade de me expressar em diversas áreas, na música com o Oitão, nas tatuagens que contam minha história, nas motos que me conectam com a estrada e a liberdade, nos livros, na arte, na TV… Tudo isso faz parte de quem eu sou. E é justamente essa mistura que alimenta minha cozinha. Esses diferentes territórios me mantêm em movimento. Me tiram da zona de conforto. E é fora dela que eu mais crio. A cozinha do Sal tem muito disso — é o reflexo de um cara que vive intensamente, que sente, que erra, que aprende. E quanto mais eu vivo, mais eu tenho o que colocar no prato.
Com 20 anos de Sal nas costas, Fogaça não suaviza: cozinha é palco, é pressão, é resistência — e também um espaço de escuta e acolhimento
Henrique Tarricone/Divulgação
CV: Você também tem usado sua visibilidade para defender pautas sociais importantes, como o uso da cannabis medicinal. Qual é o papel do chef – e da gastronomia – no debate sobre saúde, inclusão e bem-estar?
Eu acredito que o chef, hoje, não é só alguém que cozinha. A gente tem voz, tem alcance, e isso vem com responsabilidade. No meu caso, eu uso essa visibilidade pra falar de coisas que acredito de verdade — como o uso da cannabis medicinal, por exemplo, que conheci mais de perto por causa da minha filha, a Olivia. Vi o quanto fez diferença pra qualidade de vida dela, e percebi o quanto ainda existe preconceito, desinformação e burocracia em torno disso. Não dava pra ficar calado.
A gastronomia tem um poder enorme de transformação. É através da comida que a gente fala sobre cultura, respeito, inclusão, saúde, sustentabilidade. Um restaurante pode ser um espaço de acolhimento, de troca, de reflexão. Eu acredito numa gastronomia que alimenta o corpo, mas também a cabeça e o coração.
CV: Você já declarou em entrevistas que sua filha Olivia transformou sua maneira de ver o mundo. Que aprendizados da vida pessoal influenciam diretamente o jeito como você cozinha, lidera e empreende?
A Olivia mudou tudo na minha vida, de um jeito que eu nem imaginava. Antes dela, eu era mais cabeça dura, mais cabeça quente, com aquela pegada intensa e às vezes até impulsiva. A chegada dela me ensinou a desacelerar, a olhar o mundo com mais cuidado, com mais sensibilidade. E não somente a Olivia, mas meus filhos João, Maria Leticia, todos eles me ensinaram e continuam a me ensinar todos os dias.
Isso impactou direto no meu jeito de cozinhar. Na liderança, eles me mostraram que paciência e escuta são essenciais. No empreendedorismo, me fizeram repensar o que realmente importa. Não é só sobre crescer rápido ou ganhar dinheiro, mas sobre construir algo que faça sentido, que tenha propósito, que seja sustentável no tempo e humano no trato. Eles me ensinaram que, no fim, a vida é feita de conexão — com a família, com a equipe, com o cliente. E essa conexão é o que dá sabor, não só ao prato, mas a tudo que a gente faz.
CV: A cozinha aberta do Sal convida o cliente a participar da experiência e acompanhar o movimento dos bastidores. Como você vê a relação entre transparência, afeto e performance no restaurante contemporâneo?
A cozinha aberta do Sal nunca foi só estética, ela é um posicionamento. Desde o começo, eu quis que o cliente visse o que acontece ali dentro: o fogo, a correria, os erros, os acertos, a verdade. Isso cria uma conexão muito mais forte. Quando a pessoa vê o cozinheiro trabalhando ali na frente dela, sente o cheiro subindo da frigideira, ouve a chapa estalando… ela participa da experiência, não é mais só espectadora.
Transparência, pra mim, é respeito. É mostrar que não tem truque, que tudo ali é feito na raça, com técnica, higiene, cuidado profundo e sentimento. No restaurante contemporâneo, essa mistura de transparência, afeto e performance é o que torna a experiência completa. As pessoas não querem só comer bem — elas querem sentir, entender, viver aquilo. E é isso que a gente tenta oferecer todos os dias no Sal.
A cozinha aberta do Sal Gastronomia no Shopping Cidade Jardim
Divulgação
CV: Você tem uma trajetória consolidada, mas mantém uma postura inquieta e criativa. Há novos projetos à vista?
Sim, sempre estou em movimento. A inquietude é o que me mantém vivo, criativo, com vontade de fazer mais. Tenho um novo projeto para a TV que é o Mundo do Sal, um programa que vai além da gastronomia — é uma viagem cultural, histórica e sensorial. A estreia está prevista para 2026, também na BAND. Assim que puder compartilhar mais detalhes, volto a falar sobre, mas tem muita coisa para acontecer e estou bem empolgado com tudo, e grato por viver tudo isso.
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Natural de Piracicaba, Fogaça construiu uma carreira à margem dos clichês que moldam a figura do chef celebridade. Enquanto muitos optam por polir suas imagens, ele aposta na crueza como linguagem. São mais de 100 tatuagens, gosto declarado por motos, skate e guitarras distorcidas. Mas também há delicadeza — como no cuidado quase artesanal com que revive pratos do passado no novo menu comemorativo do Sal. “A ideia foi revisitar receitas que marcaram nossa história, com sabor intenso e raízes brasileiras”, explica. “Pratos como a Copa Lombo com farofa de pão e quiabo ou o Risoto de carne seca com queijo coalho sintetizam bem essa identidade.”
Copa Lombo com farofa de pão e quiabo é um dos pratos presentes no menu comemorativo de 20 anos do Sal Gastronomia
Embrasa
Do improviso de um início intuitivo à sofisticação conquistada com o tempo, o Sal tornou-se um “organismo vivo”, como define o próprio Fogaça, sempre em mutação, mas sem jamais trair a própria origem. Em tempos de algoritmos e fórmulas repetidas, ele aposta na cozinha autoral como palco de resistência. “É um espaço de expressão. Cada prato tem uma história, um motivo pra estar ali.”
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E é justamente essa mistura — de força e ternura, de caos e controle, de rock pesado e saladas de figo — que faz de Henrique Fogaça uma figura singular na cena gastronômica brasileira. A seguir, ele faz à Casa Vogue um balanço de sua trajetória:
CV: Henrique, o Sal Gastronomia completou duas décadas de história. Quando você olha para trás, qual foi o momento mais decisivo para o sucesso do restaurante — e o que hoje você entende como a essência que manteve a casa viva por tanto tempo?
Olhar pra trás e ver o Sal completando 20 anos é uma sensação muito forte. Teve muita luta, muito suor, altos e baixos. Mas se eu tivesse que apontar um momento decisivo, foi quando eu entendi que o Sal precisava ser mais do que só um restaurante com comida autoral. Ele tinha que ter alma, verdade — um reflexo meu, da minha história, do que eu acredito.
No começo, era tudo muito intuitivo. Eu cozinhava com garra e com paixão. E isso, de certa forma, virou a identidade da casa. Com o tempo, fui refinando, trazendo mais técnica, estudando, mas sem perder a essência. E a essência, pra mim, é justamente essa: autenticidade. Cozinha com pegada, com raiz, com sentimento. E um ambiente onde a galera se sinta em casa, bem recebida, com arte, um drink caprichado… O Sal é um organismo vivo, e acho que o segredo pra ele ter durado tanto tempo é que ele nunca deixou de se transformar — mas sempre sendo fiel a quem a gente é.
+ Por dentro dos cenários mirabolantes do ‘Chef de Alto Nível’, novo programa da TV Globo
CV: O menu comemorativo celebra essa história com pratos que marcaram época. Como foi o processo de seleção?
Escolher os pratos para o menu comemorativo foi um processo de resgate e reflexão. A ideia era revisitar receitas que marcaram nossa história e que representam a essência da casa. Temos pratos que carregam a identidade do Sal como Copa Lombo com farofa de pão e quiabo, Risoto de carne seca com queijo coalho e Spaghetti de quinoa com legumes, além da Salada de Figo e o Carpaccio de Bife Ancho. Eles têm sabor intenso, raízes brasileiras e apresentação sem firulas.
Risoto de carne seca com queijo coalho
Embrasa
CV: Em duas décadas de restaurante, o que mudou no paladar do público? E como você enxerga o papel da cozinha autoral no cenário gastronômico atual?
Nesses 20 anos, o paladar do público mudou bastante. Hoje em dia, vejo que ele está muito mais aberto, curioso e também mais informado. A internet ajudou nisso — o acesso à gastronomia se democratizou, e muita gente passou a entender melhor o que está comendo, a origem dos ingredientes, as técnicas. Isso é ótimo, e também exige mais da gente, porque o nível de exigência subiu, o que nos permite estarmos sempre focados em oferecer a melhor experiência.
Em relação à cozinha autoral, eu vejo como uma resistência — no bom sentido. É um espaço de expressão, onde o chef coloca a própria identidade no prato. Num mundo cheio de modismos, de fast food, de fórmulas repetidas, a cozinha autoral tem um papel fundamental: mostrar que ainda existe verdade, criatividade e alma no que a gente faz. No Sal, por exemplo, eu sempre levei isso muito a sério. Cada prato tem uma história, um motivo pra estar ali. E acho que o público sente isso, valoriza essa entrega.
Salão do Sal Gastronomia, na rua Bela Cintra
Embrasa
CV: O universo da alta gastronomia ainda é marcado por hierarquias rígidas e ambientes de alta pressão. Você já esteve dos dois lados da cozinha — como chef e líder. Como enxerga os debates sobre assédio, burnout e saúde mental nos restaurantes?
Esse é um tema muito importante, e eu falo com propriedade porque já vivi isso na pele. A cozinha profissional, principalmente na alta gastronomia, sempre foi um ambiente de muita pressão, hierarquia pesada e cobrança extrema. E, durante muito tempo, isso foi tratado como normal — como se pra ser bom, tinha que sofrer, tinha que aguentar calado. Mas não é bem por aí. Hoje, como líder, tento fazer diferente. Claro que tem cobrança, tem disciplina, mas também tem escuta, tem respeito. A saúde mental precisa ser levada a sério. Um time só rende bem se estiver equilibrado, e isso vale pra qualquer área. O assédio não pode mais ser tolerado. A cultura do medo tem que dar lugar a uma cultura de parceria, de evolução coletiva. Cozinha é trabalho em equipe — se um desaba, o sistema todo desanda.
Acho que a gente, como referência no mercado, tem a responsabilidade de puxar essa mudança. E ela já começou, felizmente. Ainda tem muito a melhorar, mas estamos caminhando.
+ Rodolfo de Santis: “O Nino criou uma nova visão da gastronomia no Brasil”
CV: A sustentabilidade virou uma palavra-chave nos cardápios, mas ainda esbarra em práticas pouco coerentes nos bastidores. Como você vê o real compromisso da gastronomia com sustentabilidade?
Sustentabilidade não pode ser só discurso bonito em cardápio. Tem que ser prática real, diária, desde a escolha dos ingredientes até o descarte do lixo. E isso dá trabalho, custa mais, exige planejamento, por isso muita gente fala, mas poucos fazem de verdade.
No Sal, a gente sempre buscou usar ingredientes da estação, aproveitar melhor os insumos. Não é só por questão ambiental, mas porque também faz sentido pro sabor, pra identidade do prato. Claro, que ainda dá pra melhorar muita coisa. Na gastronomia, que mexe com natureza, com cultura, com gente, não dá mais pra separar sabor de responsabilidade.
CV: Seu percurso vai muito além da cozinha — entre palcos com a banda Oitão, tatuagens, motos, livros e a televisão. Como esses diferentes territórios alimentam sua criação gastronômica?
Sempre tive necessidade de me expressar em diversas áreas, na música com o Oitão, nas tatuagens que contam minha história, nas motos que me conectam com a estrada e a liberdade, nos livros, na arte, na TV… Tudo isso faz parte de quem eu sou. E é justamente essa mistura que alimenta minha cozinha. Esses diferentes territórios me mantêm em movimento. Me tiram da zona de conforto. E é fora dela que eu mais crio. A cozinha do Sal tem muito disso — é o reflexo de um cara que vive intensamente, que sente, que erra, que aprende. E quanto mais eu vivo, mais eu tenho o que colocar no prato.
Com 20 anos de Sal nas costas, Fogaça não suaviza: cozinha é palco, é pressão, é resistência — e também um espaço de escuta e acolhimento
Henrique Tarricone/Divulgação
CV: Você também tem usado sua visibilidade para defender pautas sociais importantes, como o uso da cannabis medicinal. Qual é o papel do chef – e da gastronomia – no debate sobre saúde, inclusão e bem-estar?
Eu acredito que o chef, hoje, não é só alguém que cozinha. A gente tem voz, tem alcance, e isso vem com responsabilidade. No meu caso, eu uso essa visibilidade pra falar de coisas que acredito de verdade — como o uso da cannabis medicinal, por exemplo, que conheci mais de perto por causa da minha filha, a Olivia. Vi o quanto fez diferença pra qualidade de vida dela, e percebi o quanto ainda existe preconceito, desinformação e burocracia em torno disso. Não dava pra ficar calado.
A gastronomia tem um poder enorme de transformação. É através da comida que a gente fala sobre cultura, respeito, inclusão, saúde, sustentabilidade. Um restaurante pode ser um espaço de acolhimento, de troca, de reflexão. Eu acredito numa gastronomia que alimenta o corpo, mas também a cabeça e o coração.
CV: Você já declarou em entrevistas que sua filha Olivia transformou sua maneira de ver o mundo. Que aprendizados da vida pessoal influenciam diretamente o jeito como você cozinha, lidera e empreende?
A Olivia mudou tudo na minha vida, de um jeito que eu nem imaginava. Antes dela, eu era mais cabeça dura, mais cabeça quente, com aquela pegada intensa e às vezes até impulsiva. A chegada dela me ensinou a desacelerar, a olhar o mundo com mais cuidado, com mais sensibilidade. E não somente a Olivia, mas meus filhos João, Maria Leticia, todos eles me ensinaram e continuam a me ensinar todos os dias.
Isso impactou direto no meu jeito de cozinhar. Na liderança, eles me mostraram que paciência e escuta são essenciais. No empreendedorismo, me fizeram repensar o que realmente importa. Não é só sobre crescer rápido ou ganhar dinheiro, mas sobre construir algo que faça sentido, que tenha propósito, que seja sustentável no tempo e humano no trato. Eles me ensinaram que, no fim, a vida é feita de conexão — com a família, com a equipe, com o cliente. E essa conexão é o que dá sabor, não só ao prato, mas a tudo que a gente faz.
CV: A cozinha aberta do Sal convida o cliente a participar da experiência e acompanhar o movimento dos bastidores. Como você vê a relação entre transparência, afeto e performance no restaurante contemporâneo?
A cozinha aberta do Sal nunca foi só estética, ela é um posicionamento. Desde o começo, eu quis que o cliente visse o que acontece ali dentro: o fogo, a correria, os erros, os acertos, a verdade. Isso cria uma conexão muito mais forte. Quando a pessoa vê o cozinheiro trabalhando ali na frente dela, sente o cheiro subindo da frigideira, ouve a chapa estalando… ela participa da experiência, não é mais só espectadora.
Transparência, pra mim, é respeito. É mostrar que não tem truque, que tudo ali é feito na raça, com técnica, higiene, cuidado profundo e sentimento. No restaurante contemporâneo, essa mistura de transparência, afeto e performance é o que torna a experiência completa. As pessoas não querem só comer bem — elas querem sentir, entender, viver aquilo. E é isso que a gente tenta oferecer todos os dias no Sal.
A cozinha aberta do Sal Gastronomia no Shopping Cidade Jardim
Divulgação
CV: Você tem uma trajetória consolidada, mas mantém uma postura inquieta e criativa. Há novos projetos à vista?
Sim, sempre estou em movimento. A inquietude é o que me mantém vivo, criativo, com vontade de fazer mais. Tenho um novo projeto para a TV que é o Mundo do Sal, um programa que vai além da gastronomia — é uma viagem cultural, histórica e sensorial. A estreia está prevista para 2026, também na BAND. Assim que puder compartilhar mais detalhes, volto a falar sobre, mas tem muita coisa para acontecer e estou bem empolgado com tudo, e grato por viver tudo isso.
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