Black joy: artistas negros transformam suas telas em celebração e empoderamento

Quando se fala em negritude, quase sempre as dores e as mazelas vêm à tona primeiro, consequência direta de séculos de escravidão e suas marcas persistentes. Falar das lutas é necessário, mas criar novas narrativas é essencial. É urgente ampliar o repertório de histórias para além do sofrimento, abraçando a potência, a beleza e a alegria de existir enquanto pessoa negra.
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O conceito black joy surge justamente como um respiro e uma afirmação: celebrar a vida negra em suas conquistas, afetos e cotidianos, sem que a dor seja o centro da narrativa. Representatividade não é apenas ocupar um espaço, mas diversificar as vozes que falam nele e garantir que essas vozes ecoem de forma plena.
Tenho percebido que, mesmo de forma intuitiva, essa felicidade negra tem se manifestado nas artes visuais. Artistas incríveis vêm criando obras que não apenas resistem, mas também vibram, dançam e nos lembram que a alegria também é um ato político. Nesta coluna, cito três artistas que incorporam o black joy de forma potente em suas criações.
Marcos da Matta
Acho que foi em uma de suas telas, retratando uma das viações rodoviárias de Salvador, BA, que conheci o trabalho de Marcos da Matta. É impossível não notar sua arte: as cores sempre vibrantes e os personagens, eternamente sorridentes, prendem o olhar de imediato.
Natural de Conceição do Almeida, no Recôncavo Baiano, Marcos da Matta, 35 anos, transformou o desenho e a pintura em ferramentas para ler o mundo e criar novos universos. Desde criança, usava o traço e a cor não apenas para se expressar, mas para sintetizar suas leituras e percepções do cotidiano.
Marcos da Matta é natural de Conceição do Almeida, na Bahia, e desenvolve um trabalho entre o figurativo e o abstrato
Larissa Neres/Divulgação
Hoje, seu trabalho transita entre o figurativo e o abstrato, tocando o realismo, o surrealismo e o afrossurrealismo. Porém, é no termo que ele próprio cunhou — sobrevivencialismo — que encontra sua identidade.
Ao subverter o sentido original da palavra, que remete a estratégias de sobrevivência em contextos extremos, Marcos propõe uma leitura que parte da vivência de pessoas negras e pobres: a criatividade para inventar formas de resistir com os recursos disponíveis — materiais, naturais ou emocionais. Nesse processo, ele traz para o centro, o sorriso, o descanso, o prazer e os encontros, registrando-os em fotografias e pinturas como um exercício consciente de cultivar e perpetuar a alegria.
“Eu quero me ver sorrindo e quero que as pessoas me vejam assim. Quero contribuir para um mundo de alegria, não de dor. Meu trabalho é uma forma de se retroalimentar com tranquilidade e positividade. Vivo nessa busca por momentos positivos e quero passá-los adiante”, afirma o artista.
Tela “Festa D’Ajuda nº I”, de Marcos da Matta
Ilan Iglesias/Reprodução
Seu olhar parte de um compromisso político e afetivo: contrapor à narrativa dominante, marcada pela dor e pela miséria, uma visão de mundo em que a felicidade não é exceção, mas um direito.
Para Marcos, a arte é um espaço de retroalimentação positiva, um convite para que o público se reconheça em imagens que despertam bem-estar e humanizam as histórias dos trabalhadores de rua, das comunidades e dos afetos cotidianos. Assim, sua obra se inscreve na tradição do black joy, celebrando os fragmentos de felicidade que, mesmo breves, sustentam a resistência e reafirmam a potência de viver.
Daiane Lucio
Foi ao caminhar pelos corredores de uma mostra de decoração que me deparei com a arte de Daiane Lucio. As cores vibrantes e a pincelada firme sobre o tecido chamaram minha atenção, mas o que realmente prendeu meu olhar foi a maneira como ela retratava o corpo feminino negro em cenas cotidianas, sob uma lente surrealista.
Dai em seu ateliê no Rio de Janeiro
Daiane Lucio/Divulgação
Nascida em São Paulo e residente no Rio de Janeiro, Dai, como gosta de ser chamada, tem 37 anos e carrega a influência artística do pai, artista plástico, desde cedo. Apesar disso, foi durante a pandemia que decidiu retomar a pintura.
Sua vivência como mulher negra e gorda desde a adolescência moldou seu olhar sobre o mundo. A partir de seu primeiro autorretrato, ganhou confiança para narrar histórias de empoderamento feminino.
Tela “Passeio na terra do porvir”, de Daiane Lucio
Daiane Lucio/Divulgação
“As pinturas me ajudaram a entender quem eu sou e a refletir sobre as coisas que penso e vejo. Pintar versões diferentes de mim foi um tesouro”, conta.
Autodidata, Dai acredita que a arte não precisa carregar o sofrimento o tempo todo. Seu trabalho dialoga com o conceito de black joy, valorizando representações que celebram a vida e os sonhos. “Consegui trazer o lado sonhador da minha adolescência para as pinturas, sem deixar a vontade de ser outras coisas”, ela comenta.
Rynnard
Nas paredes do Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (MUNCAB), em Salvador, pude ver pela primeira vez a arte do Rynnard. Em meio a diversos trabalhos, as suas colagens provocavam uma sensação de curiosidade, já que misturava rostos antigos em colagens com cores e itens modernos.
O artista de 29 anos é natural de Governador Valadares, no Vale do Rio Doce, em Minas Gerais, mas atualmente reside na capital baiana. Ele prefere se definir como “artesão digital”, uma ironia que provoca curiosidade sobre sua produção, visto que seu território criativo é a colagem digital.
A colagem é uma das linguagens marcantes do trabalho de Rynnard. Na imagem, colagem de si mesmo
Rynnard/Divulgação
Desde criança, Rynnard se encantava com varandas, quintais e objetos das casas das tias e vizinhas. Esses cenários se tornaram um arquivo afetivo que ele traduz hoje em imagens sobrepostas, carregadas de cor, memória e poesia.
Na graduação em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), no Paraná, percebeu que muitos colegas brancos tinham preservadas memórias genealógicas e registros de seus antepassados, enquanto ele conhecia apenas alguns nomes e poucos retratos. Dessa ausência nasceu a série Memória e Herança: Álbum de Família, em que recria memórias ancestrais a partir de imagens coloniais, ressignificando os retratos originais.
Ao vencer um edital com o projeto, notou como os circuitos tradicionais de arte, ainda dominados por pessoas brancas, preferem narrativas sobre a dor negra, muitas vezes, exploradas de forma superficial e com viés de produto, sem profundidade real. Mesmo partindo de momentos de solitude ou incômodo, seu trabalho irradia vitalidade.
Quadro “Foto de Família”, de Rynnard
Rynnard/Divulgação
“Estamos em um território exuberante, de cores e texturas vivas. Andamos de mãos dadas com a saturação e a vibração, então eu só me rendi a isso”, ele diz. Maximalista e intuitivo, vê na cor e no detalhe uma herança ancestral e no cotidiano o berço da estética.
Sua obra, alinhada ao conceito de black joy, amplia o valor de cenas comuns, convidando o público a percebê-las como potência. “É importante falar sobre o trauma e a dor, pois ainda vivemos numa realidade racista. Porém, pode haver a beleza, a alegria, a filosofia de vida e a excelência. Até porque o povo preto também é magnificência”, define o artista.
A dor é parte, mas não precisa ser a única
A dor é parte do processo de se reconhecer enquanto pessoa negra, mas as alegrias e potências também devem fazer parte desse caminho.
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Já disse Neusa Santos, no livro Tornar-se Negro: “saber-se negro é viver a experiência de ter sido massacrado em sua identidade, confundido em suas perspectivas, submetido a exigências, compelido a expectativas alienadas. Mas é também — e, sobretudo — a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades”.
Logo, se entender enquanto negro não é apenas revisitar feridas históricas, mas também construir narrativas de afirmação e liberdade. A arte é potente nesse sentido porque materializa aquilo que deveria ser vivido: ela nos convida a imaginar e desejar as alegrias da negritude, não como exceção, mas como parte natural e cotidiana da experiência negra.

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