Se em um concurso de televisão perguntassem sobre as obras arquitetônicas de Dalí, aposto que você responderia citando sua casa em Cadaqués, onde viveu por vários anos com Gala, e seu teatro-museu em Figueres, que abriga a maior e mais completa coleção de obras de Dalí no mundo. E você ganharia a rodada, porque esses dois foram os projetos em que o artista transformou completamente a fisionomia de edifícios já existentes (uma barraca de pescadores e um teatro municipal, respectivamente).
No entanto, embora poucos saibam, o gênio também interveio em outra construção, bem distante da Catalunha. Trata-se da Monkton House, uma residência tipicamente inglesa construída entre 1902 e 1903 por Edwin Lutyens para o rico empresário William Dodge James e sua família. O cottage servia como refúgio em sua propriedade de mais de 2.400 hectares.
Um relógio com cortinas esculpidas no exterior da Monkton House
© Tony Evans/Getty Images
William teve apenas um filho, Edward, que utilizou a fortuna familiar para promover a arte. Ainda em Oxford, editou o primeiro livro de poemas de John Betjeman e, já na década de 1960, ajudou a salvar as Watts Towers de Los Angeles, um exemplo singular de art brut americano. Mas, se algo caracterizou este apaixonado pela criação marginal, foi ser um grande colecionador e mecenas do surrealismo, uma inclinação que pôde expressar livremente no cottage da família.
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“Queria me afastar daquele ar de casinha de campo que tanto agradava a Lutyens”, declarou mais tarde, quando a residência já havia se tornado a única casa surrealista criada no Reino Unido. A transformação foi realizada por Christopher Nicholson e Hugh Casson, sob a orientação direta de um dos amigos mais próximos de Edward: Dalí.
O interior: uma caixa cheia de tesouros
O sofá Mae West Lips, de Salvador Dalí, na Monkton House, parte da propriedade West Dean Estate em West Sussex, 1972
© Tony Evans/Getty Images
Apesar de Edward ter resistido a algumas das ideias mais extremas de Dalí (como fazer paredes na sala que se movessem para dentro e para fora, como o estômago de um cachorro), as mudanças foram notáveis já pelo exterior: o tijolo aparente da casa foi coberto com estuque roxo, e a porta de entrada pintada de rosa. As colunas da entrada foram redesenhadas para parecerem palmeiras, e os ralos foram moldados para imitar bambus. Nas soleiras das janelas, optou-se por cortinas brincalhonas criadas em gesso, e cada saída das três chaminés recebeu uma forma distinta.
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O interior também era um espetáculo: Edward, seguindo as recomendações de seus consultores artísticos, encheu a casa de arte e objetos surrealistas, incluindo um par de sofás desenhados por Dalí com a forma dos lábios de Mae West. Em um dos corredores pendia uma pintura onírica de Paul Delvaux, acompanhada de uma cadeira de Dalí com dois braços humanos finos esticados para cima em sinal de desespero. A própria cama de Edward foi inspirada em um esboço da carruagem fúnebre de Napoleão, e seu banheiro era revestido de alabastro translúcido, através do qual brilhavam imagens elétricas do sol e da lua crescente.
Uma cama com dossel, com os postes decorados para parecerem palmeiras
© Tony Evans/Getty Images
O contraste era singular, pois o interior, ao contrário do que ocorre em Cadaqués ou Figueres, não tinha nada de mediterrâneo; mesmo em seus delírios, era profundamente inglês: as chaminés, por dentro, eram de estilo Regency. Móveis antigos foram instalados, e as paredes da sala de estar e da sala de jantar foram estofadas — e até abotoadas! — com linho cinza, como se fossem um sofá vitoriano. O chão foi revestido com tecido verde de bilhar e, como não poderia deixar de ser em uma casa inglesa, a escada curva recebeu carpete, embora com um detalhe curioso: as marcas dos pés descalços da esposa de Edward (que, após o divórcio, mandaria refazer com as pegadas de seus cães).
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Destino atual
Um banheiro onírico
© Tony Evans/Timelapse Library Ltd./Getty Images
“É o melhor interior de sua época que sobreviveu neste país”, declarou ao The New York Times o historiador de arquitetura Clive Aslet. “Muita gente fez coisas imaginativas nos anos 1930, mas não resta nada na Inglaterra que se possa comparar com Monkton.” Ele disse isso em 1987, enquanto se travava uma batalha pela posse da casa. Após a morte de Edward, a propriedade havia ficado nas mãos de sua fundação, que se viu obrigada a vendê-la quando quis ampliar o colégio de artes e ofícios que levava seu nome.
A organização de proteção ao patrimônio na Inglaterra, English Heritage, tentou adquiri-la, mas, no fim, o monumento surrealista acabou em mãos privadas. O novo proprietário retirou todos os objetos do interior, mas manteve o característico exterior.
Quando se divorciou da esposa, Edward James encomendou um novo carpete, desta vez com as pegadas de seus cães
© Tony Evans/Timelapse Library Ltd./Getty Images
Para muitos — nós incluídos —, essa oportunidade perdida é dolorosa. Hoje, esta “pequena obra-prima: engenhosa, criativa, cativante e completamente diferente de qualquer outro lugar que eu já tenha visto”, como a descreveu o historiador de arquitetura Mark Girouard, não pode ser visitada, e é muito provável que sua insólita estrutura interna tenha sido modificada. Só nos restam as fotos para apreciar esta obra de arte total, única no mundo.
*Matéria originalmente publicada na Architectural Digest Espanha
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No entanto, embora poucos saibam, o gênio também interveio em outra construção, bem distante da Catalunha. Trata-se da Monkton House, uma residência tipicamente inglesa construída entre 1902 e 1903 por Edwin Lutyens para o rico empresário William Dodge James e sua família. O cottage servia como refúgio em sua propriedade de mais de 2.400 hectares.
Um relógio com cortinas esculpidas no exterior da Monkton House
© Tony Evans/Getty Images
William teve apenas um filho, Edward, que utilizou a fortuna familiar para promover a arte. Ainda em Oxford, editou o primeiro livro de poemas de John Betjeman e, já na década de 1960, ajudou a salvar as Watts Towers de Los Angeles, um exemplo singular de art brut americano. Mas, se algo caracterizou este apaixonado pela criação marginal, foi ser um grande colecionador e mecenas do surrealismo, uma inclinação que pôde expressar livremente no cottage da família.
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“Queria me afastar daquele ar de casinha de campo que tanto agradava a Lutyens”, declarou mais tarde, quando a residência já havia se tornado a única casa surrealista criada no Reino Unido. A transformação foi realizada por Christopher Nicholson e Hugh Casson, sob a orientação direta de um dos amigos mais próximos de Edward: Dalí.
O interior: uma caixa cheia de tesouros
O sofá Mae West Lips, de Salvador Dalí, na Monkton House, parte da propriedade West Dean Estate em West Sussex, 1972
© Tony Evans/Getty Images
Apesar de Edward ter resistido a algumas das ideias mais extremas de Dalí (como fazer paredes na sala que se movessem para dentro e para fora, como o estômago de um cachorro), as mudanças foram notáveis já pelo exterior: o tijolo aparente da casa foi coberto com estuque roxo, e a porta de entrada pintada de rosa. As colunas da entrada foram redesenhadas para parecerem palmeiras, e os ralos foram moldados para imitar bambus. Nas soleiras das janelas, optou-se por cortinas brincalhonas criadas em gesso, e cada saída das três chaminés recebeu uma forma distinta.
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O interior também era um espetáculo: Edward, seguindo as recomendações de seus consultores artísticos, encheu a casa de arte e objetos surrealistas, incluindo um par de sofás desenhados por Dalí com a forma dos lábios de Mae West. Em um dos corredores pendia uma pintura onírica de Paul Delvaux, acompanhada de uma cadeira de Dalí com dois braços humanos finos esticados para cima em sinal de desespero. A própria cama de Edward foi inspirada em um esboço da carruagem fúnebre de Napoleão, e seu banheiro era revestido de alabastro translúcido, através do qual brilhavam imagens elétricas do sol e da lua crescente.
Uma cama com dossel, com os postes decorados para parecerem palmeiras
© Tony Evans/Getty Images
O contraste era singular, pois o interior, ao contrário do que ocorre em Cadaqués ou Figueres, não tinha nada de mediterrâneo; mesmo em seus delírios, era profundamente inglês: as chaminés, por dentro, eram de estilo Regency. Móveis antigos foram instalados, e as paredes da sala de estar e da sala de jantar foram estofadas — e até abotoadas! — com linho cinza, como se fossem um sofá vitoriano. O chão foi revestido com tecido verde de bilhar e, como não poderia deixar de ser em uma casa inglesa, a escada curva recebeu carpete, embora com um detalhe curioso: as marcas dos pés descalços da esposa de Edward (que, após o divórcio, mandaria refazer com as pegadas de seus cães).
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Um banheiro onírico
© Tony Evans/Timelapse Library Ltd./Getty Images
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A organização de proteção ao patrimônio na Inglaterra, English Heritage, tentou adquiri-la, mas, no fim, o monumento surrealista acabou em mãos privadas. O novo proprietário retirou todos os objetos do interior, mas manteve o característico exterior.
Quando se divorciou da esposa, Edward James encomendou um novo carpete, desta vez com as pegadas de seus cães
© Tony Evans/Timelapse Library Ltd./Getty Images
Para muitos — nós incluídos —, essa oportunidade perdida é dolorosa. Hoje, esta “pequena obra-prima: engenhosa, criativa, cativante e completamente diferente de qualquer outro lugar que eu já tenha visto”, como a descreveu o historiador de arquitetura Mark Girouard, não pode ser visitada, e é muito provável que sua insólita estrutura interna tenha sido modificada. Só nos restam as fotos para apreciar esta obra de arte total, única no mundo.
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