Livraria Gato sem Rabo é destino para quem ama literatura feminina (e bons cafés e coquetéis)

Em uma encruzilhada da Vila Buarque, no centro de São Paulo, 200 escritoras se apresentam de frente, prontas para o diálogo. Estão lado a lado, capas voltadas para o leitor, livres da usual clausura achatada entre lombadas. A disposição dos livros da Gato sem Rabo ilustra também o seu manifesto: levar ao centro o que por tanto tempo esteve à margem. “Estou testando esse formato no qual a curadoria fica mais visível”, diz Johanna Stein, fundadora do espaço dedicado apenas a títulos escritos por mulheres (cisgênero, transexuais e travestis). “É um gesto ousado porque não mostra todo o acervo ao mesmo tempo, mas gosto de pensar nessa escolha como uma investigação, uma maneira de reescrever a forma de nos relacionarmos com os livros.” O novo endereço também reforça a ideia de repensar interações empoeiradas: desde agosto, a livraria ocupa o térreo do Edifício Renata Sampaio Ferreira, projetado por Oswaldo Bratke em 1956 e tombado pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo em 2012. Antes fechado por grades de uma agência dos Correios que salientavam a dura poesia concreta daquela esquina, o dilatado local parece respirar novamente.
Nas estantes, os livros são organizados com as capas voltadas para o leitor
Deco Cury
“O sucesso dos nossos projetos tem um sinal claro: mais gente na rua”, diz Guil Blanche, marido de Johanna e fundador da incorporadora Planta.Inc., responsável pela requalificação do Renata, eleito pela revista britânica Monocle o melhor retrofit do mundo em 2024. O empresário está por trás do revival de outros quatro edifícios em um raio de somente 300 m dali, incluindo o Arinda (1958), que sediou as gravadoras Copacabana Records e Odeon e encontrava-se desocupado. “A Vila Buarque é a região mais legal de São Paulo. O sex appeal de um bairro está na diversidade de gente na rua – algo que, pelo visto, assusta algumas pessoas”, provoca.
Avesso do avesso
O HM Food Café ocupa parte do térreo do Edifício Renata Sampaio Ferreira, ao lado da Gato sem Rabo
Deco Cury
Atualizado pelo Metro Arquitetos (listado no Casa Vogue 50), de Martin Corullon e Gustavo Cedroni, o projeto original de Bratke ganha leveza e porosidade ao integrar em seu térreo livraria, café, bar e restaurante. “A ideia era fazer o oposto do que estava lá: abrir toda a esquina para a cidade”, conta Cedroni. “Conciliar tantos programas que preenchessem os ambientes do início do dia até a madrugada foi o maior desafio e, ao mesmo tempo, a escolha mais acertada.”
LEIA MAIS
Vai construir ou reformar? Seleção Archa + Casa Vogue ajuda você a encontrar o melhor arquiteto para seu projeto
Responsável por projetos como a Casa Triângulo (2015) e o Edifício Pietro Maria Bardi (2024), anexo ao Masp, a dupla de arquitetos organizou os usos do Renata também em função da incidência solar: o sol da manhã preenche o HM Food Café, e o sol da tarde ilumina a livraria Gato sem Rabo e o restaurante (ainda sem nome). Já o bar Lágrima, que tem como sócio Rafael Capobianco, também dono do Cora, está intencionalmente posicionado onde não há luz natural. A este, chega-se atravessando uma abertura quase secreta na estante da livraria.
Initial plugin text
O bar Lágrima é acessado através de uma passagem secreta em uma das estantes da livraria
Deco Cury
Os interiores do bar, assinados por Aline Prado, da Planta.Inc., comportam cerca de 20 pessoas e são inteiramente contornados por grossas cortinas verdes, criando a acústica ideal para a audição de discos de vinil. Sob os pés, um dos pontos altos do cenário: um piso em mosaico de madeira, confeccionado artesanalmente a partir de resíduos da construção original. “Um dos meus principais papéis é identificar o que pode ser restaurado, ressignificado ou reaproveitado. Tínhamos sacos e mais sacos de tacos de diferentes tipos e tamanhos, e não fazia sentido desperdiçá-los. A solução foi cortar tudo em pequenos quadrados, criando esse piso maravilhoso”, explica Aline. Ela também compartilha que, embora ainda não possa revelar o nome da chef que comandará a brasserie anexa, será “uma grande mulher, extremamente talentosa e que o Brasil adora.
Deslocamento crítico
Johanna Stein posa com o livro Contos Completos, de Virginia Woolf
Deco Cury
Com quatro anos recém-completados, a Gato sem Rabo tem visto o retorno financeiro crescer desde a relocação. O sucesso se deve ao recorte de gênero e à bibliodiversidade, é claro – que “custam caro, mas são o que diferencia o projeto”, sustenta Johanna –, mas também à vocação coletiva da nova casa. “Livrarias pelo mundo estão se reinventando como espaços de permanência, contemplação e encontro. Esse ecossistema cria uma circulação de interesses que não se excluem. Quem vem pelo café descobre uma leitura, quem vem pelo livro descobre o bar escondido”, analisa.
As livrarias do mundo inteiro estão se reiventando como espaços de permanência, contemplação e encontro
LEIA MAIS
Um dos ambientes da livraria Gato sem Rabo
Deco Cury
Mais do que um ponto de venda, a Gato sem Rabo funciona como ponto de encontro – e um corpo para a metáfora imaginada por Virginia Woolf em Um Teto Todo Seu (Tordesilhas, 2014, 192 págs.), que lhe dá nome. No ensaio, a escritora britânica usa a visão desconcertante de um felino sem cauda atravessando o gramado para falar do estranhamento que mulheres causam ao ocupar ambientes literários. Publicado há quase um século, o texto evidencia algo que persiste: mulheres, que tantas vezes carecem de tempo, renda e um cômodo próprio para escrever, se veem em desvantagem diante de homens cujas necessidades básicas são mais facilmente supridas. Mesmo que elas sempre tenham produzido, o reconhecimento não acompanhou o ritmo, tirando dos circuitos de prestígio obras de enorme qualidade. A desigualdade, segundo Johanna, não está na escrita, mas na escuta.
Iniciativas como a Gato sem Rabo operam como intervenção crítica. Ao romper com a lógica do mercado, Johanna propõe uma nova chave de leitura, tão política quanto poética. “Quero honrar a história de Woolf e de tantas outras escritoras que abriram nossos caminhos até aqui. Que cada vez mais as mulheres sejam reconhecidas pela força de suas produções intelectuais e entrem nos espaços sem pedir licença.”
🏡 Casa Vogue agora está no WhatsApp! Clique aqui e siga nosso canal
Revistas Newsletter

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima