“Só sei que foi assim”: a casa de Ariano e Zélia Suassuna no Recife

Há experiências que vivemos com passos leves, quase em silêncio, mas que despertam uma urgência de serem compartilhadas. Foi assim há dois anos, quando tive o privilégio de entrar pela primeira vez na casa de Ariano e Zélia Suassuna, no Recife. A visita aconteceu graças à preciosa ajuda de Marcelle Farias e Eduardo Suassuna – proprietários da Galeria Marco Zero e parentes do escritor. A residência, adquirida em 1959 com o dinheiro dos direitos autorais da peça teatral O Auto da Compadecida (1955), se tornou refúgio de criação artística e um ponto de encontro da família e de grandes nomes da cultura brasileira. Intelectuais, músicos, bailarinos e artistas cruzaram seu jardim por mais de seis décadas, atraídos por essa “ilumiara” – termo cunhado por Ariano (1927-2014) para definir lugares especiais na construção do seu universo literário.
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Detalhe da fachada, com revestimento cerâmico de Francisco Brennand
Cristiano Mascaro
Nascido em 16 de junho de 1927 em Nossa Senhora das Neves (atual João Pessoa), Ariano se mudou ainda jovem com a mãe para uma fazenda no sertão pernambucano. Fugiam das consequências políticas do assassinato de seu pai, João Urbano Pessoa de Vasconcelos Suassuna, governador de Pernambuco de 1924 a 1928. A infância na região moldou seu olhar, aproximando-o de temas que mais tarde se tornariam a espinha dorsal do mundo mitológico criado por ele.
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Na entrada, o busto inspirado no Movimento Armorial é de Manuel Dantas Suassuna, um dos seis filhos de Ariano e Zélia
Cristiano Mascaro
No jardim, nichos na parede abrigam esculturas feitas por Zélia em homenagem à Compadecida
Cristiano Mascaro
No pórtico que antecede a cozinha, um afresco com cerâmica de Francisco Brennand e motivos pintados por Ariano Suassuna presta homenagem à epopeia portuguesa Os Lusíadas, de Luís de Camões, evocando a vida de Inês de Castro
Cristiano Mascaro
Apaixonado por ciências humanas e cultura nordestina, Ariano reconstruiu a literatura de cordel com nova linguagem artística, defendida diante de colegas, artistas e, sobretudo, ao lado da mulher. Era um catalisador, uma força da natureza, com uma visão nítida – especialmente em tempos de ditadura e de americanização do país. Suas crenças se refletiam em tudo: no vestir, no pensar, no viver. A Ilumiara Coroada, como batizou a própria casa, não era mero cenário, mas parte viva de sua obra. Espiando pelas grades do portão, percebe-se de imediato: ali não se ergue uma simples residência, mas uma casa-livro, uma casa-escultura.
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O living, com piso de ladrilho hidráulico original, é composto por móveis de madeira e couro do sertão e telas de Ariano Suassuna e Manuel Dantas Suassuna
Cristiano Mascaro
Na sala de jantar, o quadro de madeira de Mestre Benedito figura sobre o painel de Francisco Brennand, feito em homenagem a Zélia – sob o aparador, três cabeças de terracota, de Manuel Dantas Suassuna
Cristiano Mascaro
Outro ângulo do mesmo ambiente exibe mais uma criação de Brennand, dedicada ao Arcanjo Gabriel, junto a uma pia de água benta do séc. 17
Cristiano Mascaro
A janela da sala emoldura o jardim
Cristiano Mascaro
No jardim, histórias e mistérios repousam entre árvores e flores. Logo na entrada, um grande conjunto escultórico de terracota, criado por Zélia, ocupa nichos de alvenaria e presta homenagem à Compadecida, que viabilizou a compra da casa. A obra, em tom de bênção, dá as boas-vindas aos visitantes. A parede é preenchida por mosaicos do Movimento Armorial – capitaneado por Ariano na década de 1970 –, desenhados pelo escritor e executados pelo genro Guilherme da Fonte, anunciando o nome da morada.
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No detalhe da sala de jantar, esculturas de artistas populares
Cristiano Mascaro
A lateral da casa é decorada com pinturas de Ariano Suassuna e Manuel Dantas Suassuna, inspiradas na arte rupestre do Vale do Catimbau, PE
Cristiano Mascaro
Zélia Suassuna, de vestido desenhado por ela, posa no living diante de um manto de maracatu
Cristiano Mascaro
Na área externa, painel de azulejos de Francisco Brennand retrata a moradora
Cristiano Mascaro
Insatisfeito com a fachada original – revestida com azulejos da segunda metade do séc. 19, desgastada e excessivamente colonialista –, Ariano encomendou ao amigo Francisco Brennand um novo padrão cerâmico. O artista criou dois modelos: um para o embasamento, com pequenas cruzes deformadas, como se refletidas na água; e outro, maior, remetendo às girândolas das festas populares. Já a fachada lateral, de cal branca, é marcada por portas e janelas azuis. Entre elas, pairam quatro murais assinados por Ariano e seu filho Miguel Dantas Suassuna, inspirados em signos arcaicos do Parque Nacional do Catimbau, PE.
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Esculturas de Zélia e seu filho Manuel adornam o pátio
Cristiano Mascaro
Escultura no jardim representa a Ilumiara Coroada
Cristiano Mascaro
Fascinado por regionalismos, o autor os reinventava sem renegar suas raízes, projetando a casa para a modernidade. Sua morada não segue tendências: antecipa os anos. Por dentro, descortina-se atemporal e culta. Móveis de jacarandá, peças herdadas e garimpos compõem um autêntico cabinet des curiosités. Pouco alterado pelo casal, o lar preserva seu espírito original. Zélia é presença constante, musa e guardiã, surgindo em diversas criações de Francisco Brennand espalhadas pelas paredes. Mais do que esposa e mãe, foi parceira intelectual e artística. Juntos, Ariano e Zélia moldaram cada espaço como extensão de suas convicções estéticas: fiéis à história, mas atualizados pelo olhar nordestino moderno. Um lugar onde arte, literatura, família e amizade convivem – e cada detalhe parece sussurrar histórias àqueles que se aproximam com passos leves.
Assistente de produção: Douglas Huri
*Matéria originalmente publicada na edição de setembro/2025 da Casa Vogue (CV 476), disponível em versão impressa, na nossa loja virtual, e para assinantes no app Globo Mais
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