No Brasil, ainda há terras que pertencem a santos católicos; entenda

Mais de dois séculos após o Brasil deixar de ser uma colônia, um sistema que remete àqueles tempos perdura no país: a enfiteuse, também chamada de aforamento ou emprazamento. O mecanismo jurídico permite que, ainda hoje, em alguns lugares do país, santos católicos sejam “donos” de terras em áreas nobres e centrais de diversas cidades.
“A enfiteuse é uma figura jurídica herdada do direito português e implementada no Brasil desde o período colonial. Ela foi amplamente utilizada pela Coroa e pela Igreja para ocupar, administrar e arrecadar rendimentos de grandes extensões de terra”, conta Daniel Blanck, advogado especialista em direito imobiliário.
Neste modelo, o “proprietário original”, chamado de senhorio— no caso, a Igreja, o Estado ou a família imperial brasileira — mantêm o controle direto das terras. Seu uso, por sua vez, pode ser delegado a particulares, chamados enfiteutas ou foreiros, que passam a ter o “domínio útil” e podem usufruir do lote.
Eles pagam anualmente uma taxa, chamada foro pelo uso do terreno — já abolida no Brasil em alguns casos — e, ao vender o imóvel ou as benfeitorias construídas no local, pagam um percentual sobre o valor da transação ao senhorio como forma de compensação, taxa chamada de laudêmio.
Por meio da enfiteuse, a Igreja mantêm o controle das terras dos santos e recebem taxas pelo seu uso
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“A enfiteuse divide a propriedade em dois domínios: o direto, que permanece com o senhorio, e o útil, pertencente ao morador, que pode usar, herdar e vender o imóvel, mas deve pagar um foro anual e, em caso de venda, o laudêmio”, explica Daniel.
Com uma legislação que demorou para se atualizar, o país seguiu caminho contrário de seu colonizador, Portugal, do qual herdou parte dos mecanismos jurídicos.
Em sua tese de doutorado Em chão urbano, o Senhorio é Santo: urbanização e aforamento de terras no Bispado do Ribeirão Preto entre o Brasil Império e a Primeira República, Dirceu Piccinato Junior, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Campinas (SP), escreveu que “o fato de remanescer um instituto jurídico que foi amplamente empregado no período colonial brasileiro revela a considerável diferença entre Brasil e Portugal quanto à questão da propriedade da terra.”
“Portugal, no início do século 19, passou por um processo importante de libertação de suas propriedades fundiárias com a Revolução Burguesa. Muitas terras, urbanas e rurais, que estavam vinculadas a senhores nobres ou religiosos, foram desamortizadas pelo governo liberal português. No Brasil, o que identificamos foi um rearranjo de poder nesse período, com a permanência de um status quo da política territorial brasileira”, complementa.
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A enfiteuse foi definitivamente extinta no Direito português há quase meio século, em 1976, “ficando relegada ao campo das Histórias”, segundo Dirceu. No Brasil, o primeiro Código Civil nacional, promulgado em 1916, reconheceu as antigas enfiteuses e regulou o aforamento da terra e dos demais bens imóveis.
“No ano de 2002, o novo Código Civil brasileiro reconheceu as enfiteuses anteriores e passou a proibir novos aforamentos e subaforamentos. Portanto, entre nós, o regime enfitêutico não é um campo aberto às Histórias, mas um processo ainda em construção”, aponta o pesquisador em sua tese.
De acordo com Daniel, apesar da proibição de criação de novas enfiteuses, isso pouco ajudou no avanço da questão no Brasil. “Muitas propriedades em áreas históricas do país, especialmente no litoral e em antigas posses eclesiásticas, ainda seguem vinculadas a este regime”, informa.
Mecanismo antiquado
O mais antigo registro de enfiteuse conhecido é da Grécia Antiga. Segundo o professor de direito português Adriano Paes da Silva Vaz Serra, citado na tese de doutorado, ela remonta ao século 5 a.C., referindo-se a uma locação perpétua de bens de um templo e outro bem público na cidade grega de Olímpia.
O laudêmio pago à Igreja onera as vendas de imóveis construídos nas terras que pertecem aos santos
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“A enfiteuse é uma prática que vem da Grécia Antiga, por aí já se repara como é ultrapassada a sua utilidade. No início da colonização, ela serviu ao país, mas com o passar do tempo, deixou de ser útil”, fala Lucimar Alves Elias, presidente Federação Nacional dos Corretores de imóveis (Fenaci).
Segundo ela, o regime depende de alterações na lei para deixar de existir. “A solução será fazer a gestão no Congresso para que haja evolução em sua extinção o quanto antes”, declara. Um projeto que altere a legislação que dá posse de terras brasileiras a santos católicos, no entanto, ainda não existe.
O mais próximo disso é a PEC 003/22, apelidada de “PEC das Praias”, citada pela presidente da Fenaci. A proposta de emenda à Constituição extingue a posse dos terrenos da Marinha pela União, permitindo a transferência para quem as ocupa — ainda hoje, são cobrados foro e laudêmio destas terras.
A medida gerou intensos debates, com preocupações com possíveis impactos ambientais, como especulação imobiliária e preservação das áreas costeiras, e sociais, como privatização de praias, que seriam de posse de particulares e não mais públicas — questões bem diferentes das que envolvem os terrenos da Igreja, que não estão incluídos na PEC.
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Outro projeto em andamento no Congresso é o PL 1.855/2024, que propõe extinguir o regime de enfiteuse e o laudêmio de terrenos da Marinha — regidos hoje pela Lei 14.011/2020. Há quem defenda que ele também se estenda aos lotes da Igreja. “Ele tem o objetivo de simplificar a propriedade e eliminar custos herdados de estruturas coloniais”, fala o advogado.
Para Daniel, no caso das terras de santos, a solução mais prática seria a remição ou resgate do aforamento, que permite ao foreiro comprar o domínio direto e obter a propriedade plena.
“A legislação permite ao foreiro resgatar o aforamento mediante pagamento ao senhorio, normalmente o equivalente a dez vezes o valor do foro anual mais o laudêmio de 2,5%. Após o resgate, extingue-se o vínculo e o imóvel passa a ser de domínio pleno”, afirma. Mas isso também depende da boa vontade do dono da terra.
“A enfiteuse é um vestígio jurídico de um Brasil colonial, que hoje se mostra incompatível com a moderna estrutura da propriedade plena. Embora a sua extinção dependa de reformas legislativas, a tendência é que, progressivamente, esse modelo seja superado, seja pela remição voluntária, seja por políticas públicas que promovam a regularização definitiva”, conclui Daniel.
Na era colonial, muitos povoamentos se formaram por meio de doações de lotes de terra a santos para a construção de capelas
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Como os santos se tornaram “donos” de terras
A fundação de muitas das cidades brasileiras se deu por meio de doações de terras à Igreja Católica, que construía uma capela no local, dando origem ao povoado. “Esses patrimônios fundiários possibilitaram a construção de templos religiosos, bem como constituíram em chão propriamente dito, necessário para o desenvolvimento urbano”, fala Dirceu.
Um proprietário ou um conjunto de proprietários doavam uma faixa de terra a um santo de devoção, formando o chamado patrimônio religioso. “Nesse momento, após o reconhecimento da terra doada pelo responsável religioso do território, o bispo, era construída a capela e, ao redor dela, começavam a construir-se as primeiras moradas”, aponta Dirceu em seu trabalho.
Quando a terra era doada a um santo de devoção, cabia à Igreja os cuidados com a administração do patrimônio, e era recorrente o aforamento como forma de manter algum rendimento para os gastos eclesiásticos, relata o estudioso.
“Tem-se o senhorio, o santo de devoção que, por ser uma imagem, a personificação virtual do titular da posse da propriedade da terra urbana, encontra-se em uma posição que não lhe confere condições de vender a propriedade; como alternativa de rendimento, vale-se do aforamento da terra doada para a formação de seu patrimônio”, detalha Dirceu.
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A tradição de doar um patrimônio religioso a um santo de devoção na formação dos povoados persistiu no Brasil nas primeiras décadas do século 19, “mesmo com os sinais dos ideais republicanos que acenavam timidamente”, segundo o pesquisador.
“Essa realidade pode ser identificada na atualidade devido ao número considerável de cidades cujo patrimônio original de fundação possui a Igreja como titular direta da terra e em regime de aforamento”, analisa Dirceu.
Um exemplo encontrado na pesquisa feita pelo professor da PUC-Campinas é a pequena cidade de Jeriquara, no interior paulista. Com uma população de apenas 3.863 habitantes, segundo o Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ela “enfrenta sérias dificuldades no que se refere à administração municipal”: até hoje os moradores e até mesmo o poder público local não possuem registros de seus imóveis.
Segundo o estudo, um casal de moradores doou terras para a formação do patrimônio de São Sebastião de Jeriquara, em 1876. Porém, familiares entraram com ação de posse da terra em 1937, alegando que o santo de devoção não havia tomado posse da terra doada.
Em Jeriquara, no interior paulista, os moradores construíram suas casas sem o título de propriedade
Facebook/Jeriquara SP/Reprodução
“Somente em 1946 o Juiz de Direito da cidade de Franca concedeu ganho de causa à Igreja de Jeriquara. Essa situação gerou um contexto particular: a cidade se desenvolveu e os moradores construíram suas casas sem o título de propriedade, conjuntura que ainda remanesce”, escreve Dirceu em sua tese.
Na década de 1990, a Prefeitura e a Câmara Municipal de Jeriquara, a Igreja da cidade e a Diocese de Franca se uniram num trabalho exaustivo de levantamento histórico, cadastral e de registros na tentativa de solucionar o problema da posse da terra. “Foram elaborados e reunidos inúmeros documentos e processos jurídicos mas, por razões que desconhecemos, o trabalho não avançou quando chegou ao momento da regularização judicial dos lotes”, conta Dirceu.
Outro exemplo é a cidade paulista de Ribeirão Preto, cuja região central pertence até hoje a São Sebastião e tem a arquidiocese do município como sua representante. São casas, prédios e lojas que pagam o laudêmio à Igreja toda vez que são vendidos. De acordo com a pesquisa, os valores recebidos teriam como destino o Vaticano.
Desvalorização do imóvel e dificuldades na venda
A enfiteuse tem um impacto direto no valor dos imóveis que estão em terras de santos e também representa um empecilho que pode dificultar a transação.
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“Na prática, o comprador adquire apenas a construção e o direito de uso do terreno, mas o solo permanece sob domínio da Igreja, que atua como representante legal das terras consagradas a santos católicos”, comenta Eduardo Castano, especialista em gestão de negócios e mercado imobiliário.
Em muitos registros históricos, o terreno aparece formalmente em nome de santos como São José, São Francisco ou Nossa Senhora do Carmo, mas o controle é exercido por dioceses e ordens religiosas.
As principais implicações envolvem custos extras e limitações de autonomia. “A venda exige autorização da diocese ou paróquia responsável, e o comprador não se torna proprietário pleno do solo, apenas da construção”, explica Eduardo.
Além disso, o laudêmio deve ser pago toda vez que acontece a venda de imóvel em terras que pertencem à Igreja. “Historicamente, equivale a 2,5% do valor da transação, embora esse percentual possa variar conforme o título de aforamento ou lei aplicável”, afirma Daniel.
A obrigação do pagamento recai, sobre o vendedor, mas é comum que contrato e negociação redistribuam essa responsabilidade entre as partes, informa Eduardo. “Sem a quitação do laudêmio, o cartório não pode registrar a transferência de propriedade”, diz.
As terras da região central da cidade de Ribeirão Preto, SP, são de propriedade de São Sebastião
MateusZF/Wikimedia Commons
“O não pagamento da taxa de laudêmio gera multa mensal cumulativa. Já o domínio pleno do imóvel enfitêutico pode ser obtido por meio da remição”, aponta Lucimar. Em alguns casos, a Igreja mantém a posse formal do domínio direto até a regularização da pendência.
“Embora o Código Civil de 2002 tenha extinguido novas enfiteuses, ele preservou as antigas, conforme o artigo 2.038, o que mantém a validade desses contratos. Por isso, a cobrança ainda é juridicamente reconhecida, desde que o aforamento esteja devidamente registrado”, indica Eduardo.
Na avaliação dele e de outros especialistas, o modelo é historicamente ultrapassado e pode gerar entraves econômicos e jurídicos, como dificuldade de financiamento e de regularização fundiária, já que o morador não detém o domínio integral do imóvel.
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“O laudêmio representa um custo adicional que afeta diretamente a liquidez e o valor de revenda de imóveis foreiros. O processo burocrático de cálculo e anuência também pode desestimular compradores, tornando as transações mais lentas e menos competitivas frente a imóveis de domínio pleno”, argumenta Daniel.
Questionada por e-mail sobre a enfiteuse e o laudêmio, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), órgão máximo da Igreja Católica no país, informou que mantém uma comissão especial que é responsável pela “Causa dos Santos”, mas não conseguimos contato com o responsável para saber quantas terras de santos existem no país e quanto se arrecada anualmente com o laudêmio.
“Em cidades como Ribeirão Preto e Franca [São Paulo], Salvador e Vitória da Conquista [Bahia], esse tipo de cobrança permanece ativa e documentada. A Igreja, enquanto instituição privada, não tem obrigação de prestar contas públicas sobre os valores arrecadados, o que reforça a necessidade de transparência e atualização desses instrumentos no contexto atual”, analisa o advogado.

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