Em um mundo com catálogos de milhares de tintas variadas, pensar em uma paleta concisa, com poucos e bons tons universais e atemporais, aplicáveis a qualquer espaço construído, parece estranho. Mas foi exatamente isso o que o arquiteto franco-suíço Le Corbusier (1887–1965) idealizou ao criar as suas coleções da Policromia Arquitetônica (Polychromie Architecturale, em inglês).
Leia mais
“Trata-se de um sistema de composição cromática pensado para dialogar com luz, textura e escala, que serve para facilitar o uso de diversas cores de maneira intencional e equilibrada na arquitetura”, explica a curadora de arte, artesanato e design Ana Kreutzer, diretora de inteligência criativa em cores na Estúdio Prisma.
O catálogo foi criado em 1931, fruto de uma parceria do arquiteto com a marca suíça Salubra, na forma de uma coleção de papéis de parede. A primeira paleta (Salubra I) contava com 43 cores dividas em 14 diferentes matizes sólidos e seus subtons suaves.
Capa de uma das edições do livro das amostras de cores da Policromia Arquitetônica, editado pela Les Couleurs® Le Corbusier®
Cristiani Guessi/Arquivo Pessoal
Posteriormente, em 1959, o arquiteto acrescentou 20 cores vibrantes para complementar o catálogo (Salubra II), totalizando 63 tons e múltiplas possibilidades de composições. “Elas servem como ferramenta prática criada a partir de uma curadoria de tons que funcionam bem entre si no uso arquitetônico”, afirma a curadora de arte.
“Por isso, os catálogos possuem um arranjo intencional das cores e o mecanismo de ‘máscaras’ de papel com recortes vazados [molduras], que, ao serem sobrepostas à paleta, isolam o entorno e proporcionam a visualização de um conjunto de cores”, ela complementa.
As edições atuais do livro das amostras de cores da Policromia Arquitetônica são editadas pela empresa Les Couleurs® Le Corbusier®
Cristiani Guessi/Arquivo Pessoal
Os catálogos resumem as experiências e pesquisas de Le Corbusier sobre cores na arquitetura coletadas ao longo dos anos anteriores à década de 1930. O nome vem do grego antigo, em que poli = muitas e cromia = cores, ou seja, policromia arquitetônica é a técnica que utiliza múltiplas cores nos espaços construídos.
“Em 1931, Le Corbusier definiu sua relação com a policromia arquitetônica, com a qual já havia experimentado muito cedo, como demonstram as paredes coloridas presentes na Casa Jeanneret-Perret [na Suíça] desde 1912. Na década de 1920, em paralelo com sua pesquisa pictórica, ele utilizou cores tanto nas fachadas quanto em algumas paredes internas”, escreve o site da Fondation Le Corbusier.
Colorir com propósito
De acordo com Ana Kreutzer, cada nuance foi escolhida por Le Corbusier com base em três critérios:
Função espacial: aquecer, iluminar, contrair ou expandir o ambiente. O arquiteto observou, por exemplo, que um teto mais escuro que as paredes faz o ambiente parecer mais baixo ou, ainda, que uma parede azul recua enquanto uma ocre se projeta à frente.
Efeito psicológico: relaxamento, foco ou energia. Ele defendia a ideia de criar atmosferas adequadas à função do cômodo, como o uso de cores suaves no quarto e de vibrantes em áreas de convivência.
Relação harmônica entre as cores: Le Corbusier via a cor como “música para os olhos”, devendo seguir leis de harmonia comparáveis às da música clássica.
Projetada por Le Corbusier, a Unité d’Habitation, em Berlim, na Alemanha, traz as fachadas coloridas com nuances presentes nas suas paletas da Policromia Arquitetônica
Peter Malewski/Wikimedia Commons
Na avaliação da curadora, Le Corbusier revolucionou o pensamento arquitetônico ao propor o uso das tonalidades como ferramenta de construção do espaço, tão essencial quanto a luz ou o volume, podendo modificar a percepção das proporções, guiar o olhar e organizar visualmente uma composição. “Para ele, a cor é força óptica. Ele dizia que ‘a cor é um meio tão poderoso quanto o plano e a forma'”, comenta a especialista.
Além disso, ele atribuía ao matiz o poder da influência psicológica, o caráter simbólico capaz de conectar influências culturais diversas e a dimensão conceitual da arte atrelada à vida cotidiana. “Ele via a cor como a ponte entre a arte e a arquitetura, sugerindo que cor é arquitetura e não decoração”, frisa Ana.
Leia mais
Adicionar Link
Para a especialista, a abordagem de Le Corbusier antecipou o que hoje é chamado de design sensorial ou neuroarquitetura, demonstrando que o profissional estava à frente do seu tempo. “Embora tenha sido pioneiro ao atrelar caráter psicológico e fisiológico da cor na arquitetura, sua filosofia está totalmente alinhada às observações de Goethe [escritor alemão], descritas no livro Teoria das Cores, de 1810, o qual deu origem ao que hoje chamamos de psicologia das cores”, ela pontua.
Inspiração nas artes e na natureza
As tonalidades vieram das observações de Le Corbusier de harmonias nas paisagens naturais, presentes também em seus estudos de pintura antes mesmo de se tornar arquiteto, assim como de suas observações da arquitetura vernacular mediterrânea, com tons terrosos, ocres, verdes e azuis suaves.
“O apelo naturalista limita as cores aos pigmentos naturais, demonstrando uma identidade tradicional, conectada com padrões internacionais das belas artes e da pintura europeia, e ainda atrelando sua nomenclatura aos nomes das tintas”, comenta a arquiteta Cristiani Guessi, doutora em tecnologia da cor.
Cores das paletas da Policromia Arquitetônica de Le Corbusier estão presentes no projeto da Maison du Brésil, em Paris, França
Flickr/Archigeek/Creative Commons
As nuances mais vibrantes, estabelecidas posteriormente, surgem de uma fase experimental e brutalista do arquiteto, com vermelhos intensos, amarelos solares, azuis ultramarinos e cinzas de concreto. “Aqui a cor não é apenas harmoniosa, é também tensão, contraste e emoção”, fala Ana.
As paletas seguem um estilo “quase ditatorial”, servindo como manual ilustrado com instruções de uso. “A gama de cores é limitada, em ambas coleções, oferecendo uma base sistemática para escolhas personalizadas, mas que, ao mesmo tempo, garante resultado preciso. Seu conceito de policromia defende a estética e a qualidade em primeiro lugar”, analisa Cristiani.
Leia mais
Adicionar Link
As nuances da Policromia Arquitetônica não podem ser alteradas ou reproduzidas sem autorização e, até hoje, são licenciadas com exclusividade pela empresa Les Couleurs® Le Corbusier®. “Ele condenava veementemente o desenvolvimento da oferta e produção de cores em grandes quantidades, iniciada na época pelas indústrias de tintas e que avança até os dias de hoje”, comenta Cristiani.
Diferentemente dos sistemas de classificação, como círculos cromáticos e atlas, que surgiram na mesma época, a proposta de Le Corbusier tenta assegurar que a escolha da paleta seja a mais assertiva possível, oferecendo uma gama limitada.
O Palácio da Justiça da cidade de Chandigarh, na Índia, foi projetado por Le Corbusier com cores da Policromia Arquitetônica
Sanyam Bahga/Wikimedia Commons
A opção pelo desenvolvimento das cores em uma coleção de papéis de parede visava o máximo controle da produção, evitando assim, as surpresas da mistura de tonalidades nas obras e, consequentemente, a possibilidade de alteração do tom desejado. O material da Salubra foi chamado, inclusive, de “tinta a óleo vendida em rolos” (la peinture à l’huile vendue en rouleaux, em francês).
As principais características das paletas
Apesar de limitada, a seleção proporciona ampla gama de composições e efeitos tanto fisiológicos/espaciais quanto emocionais. “Isso pode ser observado na diversidade estética e sensorial de suas obras, mostrando que a Policromia Arquitetônica não se limita ao catálogo de cores, muito menos a um estilo ou sensação específica, tratando-se de uma filosofia, uma maneira de pensar cores na arquitetura”, analisa a curadora de arte.
“Nos dias de hoje, com a infinidade de ofertas e o paradigma da escolha, faz cada vez mais sentido investir em seleções bem pensadas e ferramentas didáticas para os profissionais”, ela acrescenta.
Leia mais
Adicionar Link
A primeira paleta, lançada no outono de 1931, apresenta 43 tonalidades, além de 12 composições de cores (chamadas de “teclados”, em alusão às teclas do piano), cada uma composta por 31 tons diferentes, que podem ser combinados entre si. Essas composições criam diferentes “atmosferas”, que dão nome a elas.
“As cartelas da coleção intitulada Claviers de Couleurs [Teclados Coloridos] têm sua apresentação pautada no arranjo do teclado do piano, considerado por Le Corbusier como o instrumento que produz a mais bela música moderna”, explica Cristiani.
Livros mais atuais sobre a Policromia Arquitetônica (abaixo) e com as amostras de cores (acima), editados pela Les Couleurs® Le Corbusier®
Cristiani Guessi/Arquivo Pessoal
A analogia com a música já havia sido feita pelo arquiteto em sua obra La Peinture Moderne, escrita junto com o pintor Amédée Ozenfant em 1925.
“Os autores comparam as cores com as teclas do piano, considerando que a quantidade limitada de notas no teclado é suficiente para tocar a música de Bach e Puccini, Beethoven e Satie, podendo até serem criadas novas composições. O mesmo deve ser aplicado ao uso das cores. Limitadas à uma quantidade específica, devem ser capazes de gerar uma variedade de belas pinturas”, exemplifica Cristiani.
A coleção Salubra conta com duas molduras de papel com recortes diferentes, que “guiam” os usuários pelos teclados cromáticos para produzir “acordes harmoniosos”. As máscaras deslizantes permitem a visualização isolada de uma, duas ou três tonalidades do catálogo, com dois fundos distintos.
Leia mais
Adicionar Link
“Com algumas exceções, a cada matiz saturado é atribuído três ou quarto diferentes tons luminosos. Além dos teclados de cores e suas combinações, são oferecidas as cores puras, apresentadas de forma a garantir que a expressão arquitetônica seja preservada nas paredes”, detalha Cristiani.
Na avaliação dela, a coordenação prévia da mistura da paleta mostra que a sequência do teclado foi minuciosamente estudada antes de sua definição, visando variedade de soluções espontâneas. “Ainda que Le Corbusier tenha anunciado que todos os tons das coleções poderiam ser usados harmonicamente em conjunto, qualquer cor com qualquer outra cor, preferiu garantir o máximo de controle possível na indicação de suas composições”, destaca a arquiteta.
Fachada da Maison du Brésil, uma residência universitária em Paris, França, onde Le Corbusier aplicou a sua paleta cromática
Flickr/Guilhem Vellut/Creativa Commons
Le Corbusier tenciona, ainda, o usuário a escolher um dos dois caminhos possíveis: a total monocromia ou a múltipla policromia. “Contrariando a prática da apresentação de paletas em cadernos ou leques, ele cria a amostragem das 43 cores organizadas em temas, com diversas atmosferas onde cada uma está correlacionada à uma virtude ou ação específica e, ao mesmo tempo, à manifestações sensíveis fundamentais”, expõe a arquiteta.
A segunda coleção, de 1959, completa a Policromia Arquitetônica com 20 tons mais intensos e dinâmicos. “Aqui, novamente, Le Corbusier projetou um impressionante teclado. A combinação de matizes coloridos e acromáticos, e diferentes valores de brilho, ressalta as experiências extraordinárias de Le Corbusier na arquitetura e como pintor, que formam a base de toda a Policromia Arquitetônica”, destaca o site da Les Couleurs® Le Corbusier®.
Leia mais
o
“Esses teclados visam estimular a escolha pessoal, colocando a tarefa de seleção em uma base sistemática e sólida. Na minha opinião, oferecem um método de abordagem preciso e eficaz, que possibilita planejar, em uma casa moderna, harmonias de cores que são inegavelmente arquitetônicas, ao mesmo tempo adequadas ao gosto e às necessidades naturais”, escreveu Le Corbusier na introdução do catálogo da Salubra.
Hoje, a empresa Les Couleurs® Le Corbusier® edita novos modelos de paletas com todas as 63 cores e livros sobre a Policromia Arquitetônica. O sistema de máscaras para selecionar os tons foi removido das obras. Além dos papéis de parede, as nuances podem ser encontradas em vários produtos licenciados, como revestimentos, móveis, carpetes, interruptores de luz e até relógios e cobertores.
Obras de Le Corbusier com a Policromia Arquitetônica
A Villa La Roche-Jeanneret, em Paris, França, por Le Corbusier entre 1923-1925, foi a primeira experiência arquitetônica na paleta purista (Salubra I), e recebeu os tons dos teclados de cores em suas paredes e detalhes construtivos.
A Villa La Roche-Jeanneret, em Paris, foi a primeira experiência arquitetônica na paleta purista de Le Corbusier
Flickr/Jean-Pierre Dalbéra/Creative Commons
Já a Villa Savoye, construída entre 1928 e 1931, nos arredores da capital francesa, foi o último experimento antes do lançamento da primeira paleta.
“Foi também a primeira vez que a Promenade Architecturale [percurso arquitetônico desenvolvido por Le Corbusier, que envolve criar um itinerário de circulação não óbvio nas construções] se juntou às cores e se cristaliza nos percursos internos e externos”, fala Cristiani.
A Villa Savoye, nos arredores de Paris, foi o último experimento antes do lançamento da primeira paleta de cores de Le Corbusier
LStrike/Wikimedia Commons
Na Villa La Roche, o arquiteto experimenta sistematicamente a introdução da cor na arquitetura, colocando em prática suas duas funções, a de pintor e arquiteto.
“A arquitetura é dramaticamente envolvida pelas cromaticidade, criando novas relações visuais e espaciais, envolvendo elementos e objetos. Os tons são escolhidos por suas qualidades afim de suprir as necessidades das volumetrias arquitetônicas”, detalha a arquiteta.
Já a Villa Savoye completa o ciclo purista, declara a Policromia Arquitetônica como o manual para aplicação de cores, e inaugura um ciclo cromático nas obras de Le Corbusier.
Leia mais
Adicionar Link
“Enquanto a fase purista elabora uma paleta sofisticada de tons pastéis, a próxima fase de Le Corbusier gera uma paleta vibrante, de cores vivas e puras, com alta saturação. A cor deixa de ser aplicada apenas em paredes estrategicamente eleitas aos efeitos puristas e passa a vibrar em contraste com a rusticidade do concreto, podendo, neste momento, ser usada lado a lado com outra cor, compondo a policromia interna e externamente”, explica Cristiani.
A nova policromia (Salubra II) vem acompanhada de materiais em sua aparência natural, como o concreto, a madeira e as pedras. “As cores claras da paleta purista são substituídas por tons primários e saturados, como amarelo, vermelho, azul, verde e marrom, ainda com superfícies brancas e elementos em preto”, ela diz.
A trajetória de obras executadas por Le Corbusier mostra a evolução da consciência do arquiteto em relação ao poder de transformação espacial que a pintura pode provocar, na avaliação de Cristiani. “Fica especialmente evidente nos edifícios projetados após a Segunda Guerra Mundial, no período chamado brutalista”, declara.
Desta fase, Ana Kreutzer cita como obras representativas a Maison du Brésil, em Paris, construída entre 1952 e 1959; a Unité d’Habitation de Berlim, na Alemanha, inaugurado em 1957; e o Projeto Urbano de Chandigarh, na Índia, da década de 1950, onde Le Corbusier foi contratado para realizar o desenvolvimento urbano da cidade.
Leia mais
“Trata-se de um sistema de composição cromática pensado para dialogar com luz, textura e escala, que serve para facilitar o uso de diversas cores de maneira intencional e equilibrada na arquitetura”, explica a curadora de arte, artesanato e design Ana Kreutzer, diretora de inteligência criativa em cores na Estúdio Prisma.
O catálogo foi criado em 1931, fruto de uma parceria do arquiteto com a marca suíça Salubra, na forma de uma coleção de papéis de parede. A primeira paleta (Salubra I) contava com 43 cores dividas em 14 diferentes matizes sólidos e seus subtons suaves.
Capa de uma das edições do livro das amostras de cores da Policromia Arquitetônica, editado pela Les Couleurs® Le Corbusier®
Cristiani Guessi/Arquivo Pessoal
Posteriormente, em 1959, o arquiteto acrescentou 20 cores vibrantes para complementar o catálogo (Salubra II), totalizando 63 tons e múltiplas possibilidades de composições. “Elas servem como ferramenta prática criada a partir de uma curadoria de tons que funcionam bem entre si no uso arquitetônico”, afirma a curadora de arte.
“Por isso, os catálogos possuem um arranjo intencional das cores e o mecanismo de ‘máscaras’ de papel com recortes vazados [molduras], que, ao serem sobrepostas à paleta, isolam o entorno e proporcionam a visualização de um conjunto de cores”, ela complementa.
As edições atuais do livro das amostras de cores da Policromia Arquitetônica são editadas pela empresa Les Couleurs® Le Corbusier®
Cristiani Guessi/Arquivo Pessoal
Os catálogos resumem as experiências e pesquisas de Le Corbusier sobre cores na arquitetura coletadas ao longo dos anos anteriores à década de 1930. O nome vem do grego antigo, em que poli = muitas e cromia = cores, ou seja, policromia arquitetônica é a técnica que utiliza múltiplas cores nos espaços construídos.
“Em 1931, Le Corbusier definiu sua relação com a policromia arquitetônica, com a qual já havia experimentado muito cedo, como demonstram as paredes coloridas presentes na Casa Jeanneret-Perret [na Suíça] desde 1912. Na década de 1920, em paralelo com sua pesquisa pictórica, ele utilizou cores tanto nas fachadas quanto em algumas paredes internas”, escreve o site da Fondation Le Corbusier.
Colorir com propósito
De acordo com Ana Kreutzer, cada nuance foi escolhida por Le Corbusier com base em três critérios:
Função espacial: aquecer, iluminar, contrair ou expandir o ambiente. O arquiteto observou, por exemplo, que um teto mais escuro que as paredes faz o ambiente parecer mais baixo ou, ainda, que uma parede azul recua enquanto uma ocre se projeta à frente.
Efeito psicológico: relaxamento, foco ou energia. Ele defendia a ideia de criar atmosferas adequadas à função do cômodo, como o uso de cores suaves no quarto e de vibrantes em áreas de convivência.
Relação harmônica entre as cores: Le Corbusier via a cor como “música para os olhos”, devendo seguir leis de harmonia comparáveis às da música clássica.
Projetada por Le Corbusier, a Unité d’Habitation, em Berlim, na Alemanha, traz as fachadas coloridas com nuances presentes nas suas paletas da Policromia Arquitetônica
Peter Malewski/Wikimedia Commons
Na avaliação da curadora, Le Corbusier revolucionou o pensamento arquitetônico ao propor o uso das tonalidades como ferramenta de construção do espaço, tão essencial quanto a luz ou o volume, podendo modificar a percepção das proporções, guiar o olhar e organizar visualmente uma composição. “Para ele, a cor é força óptica. Ele dizia que ‘a cor é um meio tão poderoso quanto o plano e a forma'”, comenta a especialista.
Além disso, ele atribuía ao matiz o poder da influência psicológica, o caráter simbólico capaz de conectar influências culturais diversas e a dimensão conceitual da arte atrelada à vida cotidiana. “Ele via a cor como a ponte entre a arte e a arquitetura, sugerindo que cor é arquitetura e não decoração”, frisa Ana.
Leia mais
Adicionar Link
Para a especialista, a abordagem de Le Corbusier antecipou o que hoje é chamado de design sensorial ou neuroarquitetura, demonstrando que o profissional estava à frente do seu tempo. “Embora tenha sido pioneiro ao atrelar caráter psicológico e fisiológico da cor na arquitetura, sua filosofia está totalmente alinhada às observações de Goethe [escritor alemão], descritas no livro Teoria das Cores, de 1810, o qual deu origem ao que hoje chamamos de psicologia das cores”, ela pontua.
Inspiração nas artes e na natureza
As tonalidades vieram das observações de Le Corbusier de harmonias nas paisagens naturais, presentes também em seus estudos de pintura antes mesmo de se tornar arquiteto, assim como de suas observações da arquitetura vernacular mediterrânea, com tons terrosos, ocres, verdes e azuis suaves.
“O apelo naturalista limita as cores aos pigmentos naturais, demonstrando uma identidade tradicional, conectada com padrões internacionais das belas artes e da pintura europeia, e ainda atrelando sua nomenclatura aos nomes das tintas”, comenta a arquiteta Cristiani Guessi, doutora em tecnologia da cor.
Cores das paletas da Policromia Arquitetônica de Le Corbusier estão presentes no projeto da Maison du Brésil, em Paris, França
Flickr/Archigeek/Creative Commons
As nuances mais vibrantes, estabelecidas posteriormente, surgem de uma fase experimental e brutalista do arquiteto, com vermelhos intensos, amarelos solares, azuis ultramarinos e cinzas de concreto. “Aqui a cor não é apenas harmoniosa, é também tensão, contraste e emoção”, fala Ana.
As paletas seguem um estilo “quase ditatorial”, servindo como manual ilustrado com instruções de uso. “A gama de cores é limitada, em ambas coleções, oferecendo uma base sistemática para escolhas personalizadas, mas que, ao mesmo tempo, garante resultado preciso. Seu conceito de policromia defende a estética e a qualidade em primeiro lugar”, analisa Cristiani.
Leia mais
Adicionar Link
As nuances da Policromia Arquitetônica não podem ser alteradas ou reproduzidas sem autorização e, até hoje, são licenciadas com exclusividade pela empresa Les Couleurs® Le Corbusier®. “Ele condenava veementemente o desenvolvimento da oferta e produção de cores em grandes quantidades, iniciada na época pelas indústrias de tintas e que avança até os dias de hoje”, comenta Cristiani.
Diferentemente dos sistemas de classificação, como círculos cromáticos e atlas, que surgiram na mesma época, a proposta de Le Corbusier tenta assegurar que a escolha da paleta seja a mais assertiva possível, oferecendo uma gama limitada.
O Palácio da Justiça da cidade de Chandigarh, na Índia, foi projetado por Le Corbusier com cores da Policromia Arquitetônica
Sanyam Bahga/Wikimedia Commons
A opção pelo desenvolvimento das cores em uma coleção de papéis de parede visava o máximo controle da produção, evitando assim, as surpresas da mistura de tonalidades nas obras e, consequentemente, a possibilidade de alteração do tom desejado. O material da Salubra foi chamado, inclusive, de “tinta a óleo vendida em rolos” (la peinture à l’huile vendue en rouleaux, em francês).
As principais características das paletas
Apesar de limitada, a seleção proporciona ampla gama de composições e efeitos tanto fisiológicos/espaciais quanto emocionais. “Isso pode ser observado na diversidade estética e sensorial de suas obras, mostrando que a Policromia Arquitetônica não se limita ao catálogo de cores, muito menos a um estilo ou sensação específica, tratando-se de uma filosofia, uma maneira de pensar cores na arquitetura”, analisa a curadora de arte.
“Nos dias de hoje, com a infinidade de ofertas e o paradigma da escolha, faz cada vez mais sentido investir em seleções bem pensadas e ferramentas didáticas para os profissionais”, ela acrescenta.
Leia mais
Adicionar Link
A primeira paleta, lançada no outono de 1931, apresenta 43 tonalidades, além de 12 composições de cores (chamadas de “teclados”, em alusão às teclas do piano), cada uma composta por 31 tons diferentes, que podem ser combinados entre si. Essas composições criam diferentes “atmosferas”, que dão nome a elas.
“As cartelas da coleção intitulada Claviers de Couleurs [Teclados Coloridos] têm sua apresentação pautada no arranjo do teclado do piano, considerado por Le Corbusier como o instrumento que produz a mais bela música moderna”, explica Cristiani.
Livros mais atuais sobre a Policromia Arquitetônica (abaixo) e com as amostras de cores (acima), editados pela Les Couleurs® Le Corbusier®
Cristiani Guessi/Arquivo Pessoal
A analogia com a música já havia sido feita pelo arquiteto em sua obra La Peinture Moderne, escrita junto com o pintor Amédée Ozenfant em 1925.
“Os autores comparam as cores com as teclas do piano, considerando que a quantidade limitada de notas no teclado é suficiente para tocar a música de Bach e Puccini, Beethoven e Satie, podendo até serem criadas novas composições. O mesmo deve ser aplicado ao uso das cores. Limitadas à uma quantidade específica, devem ser capazes de gerar uma variedade de belas pinturas”, exemplifica Cristiani.
A coleção Salubra conta com duas molduras de papel com recortes diferentes, que “guiam” os usuários pelos teclados cromáticos para produzir “acordes harmoniosos”. As máscaras deslizantes permitem a visualização isolada de uma, duas ou três tonalidades do catálogo, com dois fundos distintos.
Leia mais
Adicionar Link
“Com algumas exceções, a cada matiz saturado é atribuído três ou quarto diferentes tons luminosos. Além dos teclados de cores e suas combinações, são oferecidas as cores puras, apresentadas de forma a garantir que a expressão arquitetônica seja preservada nas paredes”, detalha Cristiani.
Na avaliação dela, a coordenação prévia da mistura da paleta mostra que a sequência do teclado foi minuciosamente estudada antes de sua definição, visando variedade de soluções espontâneas. “Ainda que Le Corbusier tenha anunciado que todos os tons das coleções poderiam ser usados harmonicamente em conjunto, qualquer cor com qualquer outra cor, preferiu garantir o máximo de controle possível na indicação de suas composições”, destaca a arquiteta.
Fachada da Maison du Brésil, uma residência universitária em Paris, França, onde Le Corbusier aplicou a sua paleta cromática
Flickr/Guilhem Vellut/Creativa Commons
Le Corbusier tenciona, ainda, o usuário a escolher um dos dois caminhos possíveis: a total monocromia ou a múltipla policromia. “Contrariando a prática da apresentação de paletas em cadernos ou leques, ele cria a amostragem das 43 cores organizadas em temas, com diversas atmosferas onde cada uma está correlacionada à uma virtude ou ação específica e, ao mesmo tempo, à manifestações sensíveis fundamentais”, expõe a arquiteta.
A segunda coleção, de 1959, completa a Policromia Arquitetônica com 20 tons mais intensos e dinâmicos. “Aqui, novamente, Le Corbusier projetou um impressionante teclado. A combinação de matizes coloridos e acromáticos, e diferentes valores de brilho, ressalta as experiências extraordinárias de Le Corbusier na arquitetura e como pintor, que formam a base de toda a Policromia Arquitetônica”, destaca o site da Les Couleurs® Le Corbusier®.
Leia mais
o
“Esses teclados visam estimular a escolha pessoal, colocando a tarefa de seleção em uma base sistemática e sólida. Na minha opinião, oferecem um método de abordagem preciso e eficaz, que possibilita planejar, em uma casa moderna, harmonias de cores que são inegavelmente arquitetônicas, ao mesmo tempo adequadas ao gosto e às necessidades naturais”, escreveu Le Corbusier na introdução do catálogo da Salubra.
Hoje, a empresa Les Couleurs® Le Corbusier® edita novos modelos de paletas com todas as 63 cores e livros sobre a Policromia Arquitetônica. O sistema de máscaras para selecionar os tons foi removido das obras. Além dos papéis de parede, as nuances podem ser encontradas em vários produtos licenciados, como revestimentos, móveis, carpetes, interruptores de luz e até relógios e cobertores.
Obras de Le Corbusier com a Policromia Arquitetônica
A Villa La Roche-Jeanneret, em Paris, França, por Le Corbusier entre 1923-1925, foi a primeira experiência arquitetônica na paleta purista (Salubra I), e recebeu os tons dos teclados de cores em suas paredes e detalhes construtivos.
A Villa La Roche-Jeanneret, em Paris, foi a primeira experiência arquitetônica na paleta purista de Le Corbusier
Flickr/Jean-Pierre Dalbéra/Creative Commons
Já a Villa Savoye, construída entre 1928 e 1931, nos arredores da capital francesa, foi o último experimento antes do lançamento da primeira paleta.
“Foi também a primeira vez que a Promenade Architecturale [percurso arquitetônico desenvolvido por Le Corbusier, que envolve criar um itinerário de circulação não óbvio nas construções] se juntou às cores e se cristaliza nos percursos internos e externos”, fala Cristiani.
A Villa Savoye, nos arredores de Paris, foi o último experimento antes do lançamento da primeira paleta de cores de Le Corbusier
LStrike/Wikimedia Commons
Na Villa La Roche, o arquiteto experimenta sistematicamente a introdução da cor na arquitetura, colocando em prática suas duas funções, a de pintor e arquiteto.
“A arquitetura é dramaticamente envolvida pelas cromaticidade, criando novas relações visuais e espaciais, envolvendo elementos e objetos. Os tons são escolhidos por suas qualidades afim de suprir as necessidades das volumetrias arquitetônicas”, detalha a arquiteta.
Já a Villa Savoye completa o ciclo purista, declara a Policromia Arquitetônica como o manual para aplicação de cores, e inaugura um ciclo cromático nas obras de Le Corbusier.
Leia mais
Adicionar Link
“Enquanto a fase purista elabora uma paleta sofisticada de tons pastéis, a próxima fase de Le Corbusier gera uma paleta vibrante, de cores vivas e puras, com alta saturação. A cor deixa de ser aplicada apenas em paredes estrategicamente eleitas aos efeitos puristas e passa a vibrar em contraste com a rusticidade do concreto, podendo, neste momento, ser usada lado a lado com outra cor, compondo a policromia interna e externamente”, explica Cristiani.
A nova policromia (Salubra II) vem acompanhada de materiais em sua aparência natural, como o concreto, a madeira e as pedras. “As cores claras da paleta purista são substituídas por tons primários e saturados, como amarelo, vermelho, azul, verde e marrom, ainda com superfícies brancas e elementos em preto”, ela diz.
A trajetória de obras executadas por Le Corbusier mostra a evolução da consciência do arquiteto em relação ao poder de transformação espacial que a pintura pode provocar, na avaliação de Cristiani. “Fica especialmente evidente nos edifícios projetados após a Segunda Guerra Mundial, no período chamado brutalista”, declara.
Desta fase, Ana Kreutzer cita como obras representativas a Maison du Brésil, em Paris, construída entre 1952 e 1959; a Unité d’Habitation de Berlim, na Alemanha, inaugurado em 1957; e o Projeto Urbano de Chandigarh, na Índia, da década de 1950, onde Le Corbusier foi contratado para realizar o desenvolvimento urbano da cidade.



