Monkton House: a casa surrealista de Salvador Dalí na Inglaterra

Sofás em forma de lábios, cadeiras com mãos, telefone com fone de lagosta e outros delírios materializados por Salvador Dalí foram reunidos em uma única casa, que parece saída de um sonho. Considerada a única residência verdadeiramente surrealista do Reino Unido, a Monkton House está localizada na vila West Dean, no condado de West Sussex, na Inglaterra.
Remodelada na década de 1930 com a colaboração do artista catalão Salvador Dalí e do poeta britânico Edward James, a casa é um marco da arquitetura surrealista — onde cada detalhe foi pensado para desafiar a lógica, provocar o olhar e transformar o cotidiano em fantasia. Sua existência representa uma fusão ousada entre a arquitetura tradicional inglesa e o universo onírico do surrealismo.
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História da Monkton House
Construída originalmente no estilo Arts and Crafts, entre 1902 e 1903, pelo renomado arquiteto Edwin Lutyens, a Monkton House foi encomendada por William Dodge James (1854–1912), um rico empresário britânico do transporte marítimo. A casa era considerada um refúgio em sua propriedade de mais de 2.400 hectares. Décadas depois, seu filho Edward James herdou o imóvel. Como grande colecionador e mecenas do surrealismo, decidiu transformar radicalmente a residência campestre de seis quartos e cinco banheiros.
A Monkton House, assinada pelo arquiteto Edwin Lutyens, antes de passar pela reformulação
Lawrence Weaver/Wikimedia Commons
Em 1935, Edward James convidou Salvador Dalí para colaborar na remodelação da casa. Com o auxílio dos arquitetos Christopher Nicholson e Hugh Casson, e do decorador Norris Wakefield, juntos criaram um ambiente que refletia os ideais do surrealismo: o inconsciente, os sonhos, o absurdo e o fantástico. A casa passou de uma típica residência campestre inglesa para uma obra de arte habitável, desafiando convenções estéticas e funcionais.
Para o curador Mario Gioia, à frente da exposição “Surrealismo, 100 – A mão, o olhar e a ideia em movimento”, em São Paulo, a Monkton House é mais do que uma residência surrealista — é um projeto absolutamente particular. “Para além da poética do onírico, a casa abrigou uma coleção verdadeiramente única de surrealismo, em um espaço concebido para que o onírico e o inconsciente fossem mais do que sugestões. Morar em ambiente do tipo requeria personalidade, forte”, afirma.
Já o artista Rafael Silveira, radicado em Curitiba (PR), influenciado por Salvador Dalí em suas obras, acredita que “transformar um espaço em uma experiência surrealista é como abrir uma fresta na realidade. Quando a arte se infiltra nos ambientes onde vivemos, ela deixa de ser apenas contemplação e passa a ser vivência”.
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Salvador Dalí e sua parceria com Edward James
Salvador Dalí (1904–1989) foi um dos artistas mais emblemáticos do século 20. Com seu estilo inconfundível, bigode extravagante e imaginação sem limites, Dalí explorou temas como o tempo, a morte, o desejo e o subconsciente. Sua parceria com Edward James (1907–1984) foi uma das mais produtivas de sua carreira fora da pintura.
Retrato de Salvador Dalí, em 1939
Carl Van Vechten Photographs/Domínio Público/Creative Commons
Principal colecionador de Salvador Dalí, Edward James financiou várias obras de Dalí e colaborou em projetos como o icônico sofá em forma de lábios, inspirado na atriz Mae West — um dos móveis presentes na Monkton House. A colaboração entre os dois não apenas resultou em peças de design surrealista, mas também na residência que se tornou símbolo da liberdade criativa e da ruptura com o convencional.
O poeta britânico Edward James, financiador de muitas obras de Salvador Dalí
West Dean College/Reprodução
Segundo Mario, para além do utilitário e da arte aplicada, o mobiliário da residência transcendia um mero viver. “Na verdade, como espaço que guardou uma das principais coleções surrealistas do mundo, funcionava mais como casa-museu e menos como residência comum”, afirma.
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Elementos arquitetônicos
O exterior da Monkton House, em 1972, contava com fachada revestida de estuque e pintada de roxo
Tony Evans/Getty Images
A remodelação da Monkton House rompeu com os padrões da arquitetura inglesa tradicional. Com dois andares e várias varandas, a casa que antes tinha fachada de tijolos aparentes foi revestida de estuque e pintada de roxo, enquanto a porta da frente ganhou um tom de rosa, cores incomuns para casas campestres britânicas, escolhidas justamente para romper com a estética rural convencional.
Colunas de fibra de vidro em forma de palmeiras foram adicionadas à estrutura, evocando paisagens tropicais e exóticas que contrastam com o ambiente inglês. Ralos e calhas foram moldados para parecerem com varas de bambus, misturando funcionalidade e fantasia, enquanto as janelas receberam peitoris adornados com cortinas de gesso. Já as três chaminés ganharam formas orgânicas e esculturais, lembrando elementos biomórficos presentes nas obras de Dalí. O elemento mais icônico é o relógio com cortinas esculpidas.
Na área externa da Monkton House, relógio com cortinas esculpidas, em 1972
Tony Evans/Getty Images
O interior da Monkton House
A casa foi concebida como uma extensão física do universo surrealista. Do lado de dentro, a Monkton House continua a viagem ao inconsciente. Os ambientes misturam estilos vitorianos com surrealismo, criando uma atmosfera única e desconcertante. “A lucidez é parte essencial do delírio criativo. O surrealismo é justamente essa ponte entre o controle e o caos”, avalia Rafael.
Detalhes decorativos remetem a sonhos, delírios e fantasias, como relógios derretidos, esculturas de animais fantásticos e objetos que parecem saídos de um quadro de Salvador Dalí. As cores vibrantes e composições inesperadas estimulam os sentidos e a imaginação, tornando cada cômodo uma experiência sensorial, onde o absurdo e o belo coexistem. A casa não segue uma lógica funcional — ela convida à contemplação, à surpresa e ao estranhamento.
O colecionador de arte milionário Edward James na casa que dividia com sua esposa, a dançarina Tilly Losch, nos anos 1930
Sasha/Hulton Archive/Getty Images
Espelhos foram posicionados estrategicamente para criar ilusões ópticas e distorções espaciais, ampliando ou fragmentando os ambientes. Luminárias com formas biomórficas lembram organismos marinhos ou criaturas fantásticas, enquanto maçanetas em forma de olhos ou animais reforçam o caráter lúdico e provocador da residência. Os papéis de parede apresentam padrões psicodélicos e tons vibrantes, evocando estados alterados de consciência e sonhos.
As salas são preenchidas com móveis esculturais que desafiam a função tradicional, como cadeiras que parecem derreter ou mesas com pernas assimétricas. Na sala de jantar, dois sofás Mae West Lips, com estofados vermelhos, franjas de lã preta e detalhes de apliques verdes, foram posicionados em ambos os lados da lareira sobre um tapete verde.
Ao lado de cada sofá, outro ícone surrealista, também resultado de uma colaboração entre Salvador Dalí e Edward James: o par de abajures Champagne Standard Lamps. Cada peça conta com dez taças coupe de champanhe empilhadas – seis delas escondem habilmente cinzeiros removíveis.
Para dar vida aos móveis de Dalí, Edward também fez uma colaboração com a empresa de design britânica Green & Abbott. Entre as peças encomendadas estava o Lobster Telephone, que realmente funcionava como um telefone, misturando utilidade com provocação estética. Outra peça que merece destaque na decoração é a cadeira Drawning Hands.
A escada da Monkton House foi revestida com um carpete verde estampado com as pegadas do cachorro de Edward James
Tony Evans/Getty Images
Marcante nos interiores, a escada curva foi originalmente revestida com a marca dos pés descalços de sua ex-esposa, Tilly Losch. Após a separação, Edward o substituiu por um novo tapete, desta vez com o padrão de pegadas de seu amado cachorro wolfhound irlandês. Também em destaque na casa, um banheiro foi revestido de alabastro, iluminado por duas luzes noturnas em forma de sol e lua.
O sol e a lua são projetados na parede de um dos banheiros da Monkton House
Tony Evans/Getty Images
Ao refletir sobre o fascínio por uma casa que mistura arte, provocação e fantasia, Mario destaca “a particularidade do projeto. O onírico e o inconsciente no próprio cotidiano”.
West Dean College
Na década de 1960, Edward James se mudou para o México e entregou a propriedade de West Dean à Fundação Edward James — um fundo educacional de caridade, para nutrir a música, o artesanato tradicional e as artes plásticas. Em 1971, Edward fundou o West Dean College, uma escola de artes dedicada à conservação, ao artesanato e à preservação do conhecimento. Enquanto Monkton House permaneceu sua residência particular, James voltou ocasionalmente para supervisionar o empréstimo e a venda de obras de arte para grandes museus.
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O legado
Em 1984, após o falecimento de Edward James, a Monkton House e sua coleção particular foram para a Fundação Edward James. A organização de proteção ao patrimônio na Inglaterra, English Heritage, tentou adquiri-la, mas, no fim acabou sendo vendida para compradores privados, enquanto uma parte significativa de seu conteúdo foi leiloada na Christie’s London, em mais de 2.500 lotes.
Situação atual da Monkton House
Atualmente, a Monkton House faz parte da propriedade West Dean Estate, que abriga a West Dean College of Arts and Conservation. Embora a casa não esteja aberta ao público regularmente, ela é preservada como patrimônio histórico e artístico. Em 1985, foi designada como Grade II Listed Building, reconhecimento oficial de sua importância cultural. Mesmo fora do alcance da maioria dos visitantes, a casa é referência de surrealismo aplicado ao design, e peças como os sofás em forma de lábios integram coleções de museus, permitindo que parte do projeto seja apreciada publicamente.
Há informações de que o atual dono da Monkton House removeu todo o acervo interno, mantendo apenas a fachada característica. Restam os registros fotográficos que documentam essa obra única do surrealismo.
Curiosidades
A casa foi descrita por críticos como “a única casa surrealista completa já criada na Grã-Bretanha”;
Salvador Dalí considerava a colaboração com Edward James uma das mais livres e criativas de sua carreira;
Elementos arquitetônicos e paisagísticos da Monkton House serviram de inspiração direta para o jardim surrealista Las Pozas, no México, que Edward James construiu anos depois na selva de Xilitla;
As paredes da sala foram acolchoadas e abotoadas para manter o cômodo aconchegante e quente;
Temas náuticos estavam por toda a casa, incluindo um banheiro com temática de peixes e outros móveis com detalhes marinhos;
O ambiente nomeado como Map Room recebeu uma cama com design que lembrava as ondas do mar – vendida em leilão na Phillips, em 2018. A cama tem estrutura de ébano com entalhes em forma de rolos, terminando em uma concha esculpida — motivo repetido nas cortinas ornamentadas do cômodo — e é revestida com seda azul acolchoada. Além disso, para satisfazer o desejo de James de contemplar o céu a partir da cama, o painel central do teto foi substituído por vidro retroiluminado decorado com estrelas, supostamente posicionadas para representar o momento de seu nascimento;
A cama de Edward James foi inspirada no carro funerário de Napoleão.

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