O Barbican Centre nasceu das cinzas da Segunda Guerra Mundial, surgindo audaciosamente sobre uma paisagem devastada pelas bombas. Na noite de 29 de dezembro de 1940, um bombardeio alemão destruidor reduziu a escombros grande parte da área de Cripplegate, na Cidade de Londres. Naquele terreno fumegante, entre ruas destruídas de Moorgate a Aldersgate, germinou a semente de um sonho urbano sem precedentes. Durante mais de 15 anos, urbanistas e políticos debateram o que fazer com aquelas 35 hectares em ruínas. Alguns imaginavam um distrito empresarial frio e sem moradores, mas outro grupo vislumbrava algo radical: um novo bairro residencial no coração do centro financeiro, uma aposta inédita para a época. Contra todas as expectativas, essa última visão prevaleceu – por apenas um voto de diferença – na Câmara Municipal da Cidade. Assim, deu-se luz verde a um projeto revolucionário que buscava redefinir a forma como vivemos nas cidades, confiando à firma de arquitetura Chamberlin, Powell & Bon a tarefa titânica de erguer uma utopia moderna.
O que se seguiu foi uma odisseia de duas décadas de planejamento, projeto e construção. Peter “Joe” Chamberlin, Geoffry Powell e Christoph Bon – um trio de visionários influenciados pelas ideias do mestre Le Corbusier – conceberam o Barbican como a materialização de um ideal do pós-guerra. Sonharam com “uma cidade dentro da cidade” elevada acima do agito urbano, uma fortaleza moderna onde a vida comunitária floresceria isolada do caos metropolitano. Seus planos mostravam torres audaciosas e blocos residenciais rodeados por jardins, escolas, arte e cultura, tudo interligado em altura por passarelas para pedestres. Não seria uma urbanização comum: estava pensada para atrair profissionais jovens e cosmopolitas, amantes do design escandinavo, da vida mediterrânea e da sofisticação moderna. Em 1960, a Cidade de Londres nomeou oficialmente Chamberlin, Powell & Bon como arquitetos do projeto, embarcando-os em trinta anos de trabalho ininterrupto. Em setembro de 1963, as obras começaram em fases, mas nada seria fácil. O Barbican avançou contra vento e maré: enfrentou greves de trabalhadores, litígios e custos astronômicos antes de finalmente levantar o pano de seu grandioso palco brutalista.
Um bairro nascido das cinzas
A história do Barbican está indelévelmente marcada por sua origem dramática. Após a destruição causada pelo bombardeio aéreo, Londres se deparou com uma página em branco bem no coração da cidade. Nos anos 1950, enquanto algumas vozes pressionavam para erguer torres de escritórios na área devastada, uma facção de visionários defendeu com paixão a ideia de repovoar a região com moradias. Temiam que a cidade perdesse sua alma – e até sua representação parlamentar – caso não recuperasse habitantes depois da redução populacional. A aposta era audaciosa: alguém toparia viver entre arranha-céus financeiros? Contra todas as expectativas, e após intensos debates, os reformistas conseguiram aprovar um plano residencial para o Barbican por uma margem muito estreita.
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Com o motor político acionado, foi incumbido a Chamberlin, Powell & Bon – já consagrados por seu trabalho inovador na vizinha Golden Lane Estate – projetar um bairro completo e autossuficiente. Em 1959, apresentaram um plano mestre que impressionava pela ousadia. Imaginavam moradias para 7.000 pessoas, distribuídas em torres e blocos escalonados ao redor de praças elevadas, com todos os serviços necessários: jardins, comércios, um lago artificial, escolas, bibliotecas e espaços culturais. O Ministério da Habitação apoiou a ideia, mesmo sabendo que renunciava à elevada rentabilidade que escritórios e comércios teriam proporcionado, convencido de que era mais valioso recuperar um verdadeiro bairro residencial no coração do distrito financeiro. Essa visão idealista – uma utopia de comunidade em altura – foi formalmente aprovada em 1957, com a condição de que a própria Corporação da Cidade de Londres executasse a obra. Nenhum investidor privado se atrevia a assumir um projeto tão complexo e sem garantias de sucesso, então a Cidade assumiu o risco e também a honra de construir o que chamou de seu “presente para a nação”.
A visão brutalista: arquitetura utópica em concreto
As fontes e lago artificial fazem parte do charme do Barbican, criando espaços para relaxamento e lazer, além de suavizar a brutalidade do concreto
Sergio Amiti/Getty Images
O projeto do Barbican Centre foi uma aposta na arquitetura brutalista em sua máxima expressão. Ao longo das décadas de 1960 e 1970, guindastes ergueram uma paisagem de concreto nunca antes vista: 13 blocos residenciais em terraços de sete andares, coroados por distintas cúpulas brancas, e três imponentes torres triangulares de 42 pavimentos, cujos perfis serrilhados recortam o céu. Os edifícios foram distribuídos em torno de pátios elevados, sobre plataformas para pedestres afastadas do tráfego, formando uma trama labiríntica.
O conjunto incorporou até mesmo relíquias históricas do local, como a antiga igreja medieval de St Giles Cripplegate – com seu inconfundível telhado verde – e trechos da muralha romana de Londres, integrando-os respeitosamente aos volumes modernos. Nada semelhante existia na capital britânica: o Barbican emergiu como um colosso vanguardista de concreto armado que, segundo seus próprios criadores, evocava tanto a solidez de uma fortaleza romana quanto a funcionalidade depurada do racionalismo europeu.
A escolha do material foi decisiva. Em plena era de experimentação, Chamberlin, Powell & Bon apostaram no “béton brut”, o concreto cru e sem adornos que Le Corbusier havia elevado a linguagem escultórica. Aqui, esse concreto bruto atingiu uma escala monumental e uma textura única: centenas de operários passaram meses, martelo na mão, executando o bush-hammering em cada superfície, esculpindo com cinzel milhões de pequenas crateras nas paredes e colunas. Esse acabamento artesanal unificou a “pele” de todo o complexo com um relevo rugoso, quase orgânico, que disfarça as juntas e confere profundidade visual ao cinza uniforme.
O crítico Jonathan Glancey descreveria mais tarde o Barbican como “uma fortaleza moderna condizente com seu nome, construída inteiramente em concreto escovado”. E é que o próprio nome “Barbican” remete a uma torre defensiva medieval, um aceno perfeito para um conjunto que parecia um castelo futurista erguido sobre a cidade. Os maciços pilares cilíndricos sustentam as estruturas, criando pórticos enormes, enquanto os terraços ajardinados e os espelhos d’água adicionam uma suavidade inesperada ao entorno, contrapondo com verde a dureza do cimento.
Até mesmo os detalhes utilitários foram considerados parte do projeto: passarelas elevadas que conectam edifícios, praças internas com pisos de tijolo avermelhado, jardins privados para os residentes e floreiras integradas a cada varanda para espalhar vida vegetal pela paisagem brutalista. O resultado foi um conjunto coeso e autossuficiente, ao mesmo tempo austero e exuberante, que materializava a utopia urbana sonhada por seus arquitetos – um novo tipo de bairro vertical onde cada elemento, das torres ao último puxador, respondia a uma visão integral.
A escala e o detalhamento do Barbican impressionavam: mais de 2.000 residências de tipologias diversas – estúdios, dúplex, casas geminadas – projetadas com um padrão de luxo pouco comum em empreendimentos públicos da época. Os interiores eram modernos e elegantes, equipados com aquecimento por piso radiante e cozinhas planejadas de alto padrão, pensadas para um estilo de vida sofisticado. Cada apartamento contava com amplas janelas do chão ao teto e uma varanda privativa adornada com floreiras originais, convidando os moradores a desfrutar de vistas que iam desde jardins íntimos até o skyline de Londres. Nenhum detalhe ficou ao acaso: os arquitetos até desenharam maçanetas e luminárias, buscando uma harmonia estética total. Por toda parte se percebia a dualidade característica do Barbican: de um lado, a crueza geométrica do concreto; de outro, toques acolhedores de mogno nos interiores e a presença constante da natureza domesticada em meio ao concreto.
Uma cidade dentro da cidade: vida e usos do Barbican
O complexo foi projetado pelo escritório de arquitetura Chamberlin, Powell & Bon, cuja primeira obra foi o Golden Lane Estate
Tatiana Sviridova/Getty Images
Quando finalmente abriu suas portas, o Barbican revelou ser muito mais que um complexo residencial – era um verdadeiro ecossistema urbano autossuficiente. Oficialmente inaugurado em março de 1982 pela rainha Elizabeth II, que o aclamou como “uma das maravilhas do mundo moderno”, o Barbican Centre coroou o projeto ao dotá-lo de um coração cultural pulsante. Este centro de artes cênicas e visuais, incrustado no pódio central, abriga um grande teatro com 1.200 assentos, uma sala de concertos de classe mundial, galerias de arte, três cinemas, uma biblioteca pública e até uma estufa tropical escondida entre seus terraços.
Desde o início, os planejadores imaginaram que os moradores teriam tudo ao seu alcance: além das residências de luxo, contariam com lojas, restaurantes, pubs, escolas e até uma igreja medieval dentro do mesmo perímetro. E assim foi. Nos arredores do Barbican, ergueram-se a nova sede da Guildhall School of Music & Drama e a City of London School for Girls, integrando a educação ao cotidiano do bairro. Também foi inaugurado em uma das extremidades o Museu de Londres (hoje realocado), reforçando o caráter cultural do entorno. No nível do Highwalk – aquelas passarelas elevadas que cruzam o complexo – surgiram cafés, galerias e espaços comunitários onde se pode passear rodeado de arte pública e jardins suspensos sem tocar o chão da rua.
Para seus moradores, o Barbican oferecia uma vida sem paralelo na cidade contemporânea. Cerca de 4.000 habitantes chegaram a ocupar seus 2.113 apartamentos, criando uma comunidade incomum de profissionais, artistas e intelectuais convivendo nessa bolha modernista. Viver ali rapidamente se tornou um símbolo de status cultural: “Residir no Barbican confere uma credibilidade cultural que o dinheiro raramente pode comprar”, diziam alguns críticos. O Barbican funcionava quase como um clube exclusivo: muitos de seus primeiros inquilinos eram arquitetos, escritores, músicos e personalidades do mundo artístico atraídos pela singularidade do local. Da janela de um andar alto, podia-se contemplar a tranquilidade dos jardins e lagos internos enquanto a agitação de Londres se desenrolava aos pés do edifício, mais de 30 metros abaixo. Essa desconexão deliberada proporcionava uma calma quase suburbana em pleno centro da cidade.
Dentro dos apartamentos, os detalhes de design – escadas flutuantes, acabamentos em madeira nobre, distribuição modular engenhosa – refletiam o cuidado com a qualidade de vida que os arquitetos perseguiram com fervor. Ao sair para passear, os vizinhos podiam se encontrar para conversar à beira do lago artificial com carpas ou desfrutar de um concerto da London Symphony Orchestra sem sequer sair do complexo. Cada dia podia transcorrer inteiramente dentro do Barbican: do quarto ao escritório, de lá a um jantar na varanda de um restaurante interno, depois a uma peça de teatro sob o mesmo teto e, finalmente, de volta para casa caminhando sob as estrelas, longe do tráfego. O Barbican cumpria assim seu propósito fundacional: ser um refúgio integral e autossuficiente, uma cidade utópica em miniatura erguida no coração de Londres.
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Beleza brutal vs críticas severas
O Barbican Centre materializa a utopia urbana sonhada por seus arquitetos de criar um novo tipo de bairro vertical. No complexo, há ao todo 2.113 apartamentos
Matt Mawson/Getty Images
Desde a sua concepção, o Barbican tem suscitado polêmicas acaloradas e dividido opiniões como poucos edifícios. Para seus admiradores, representa uma obra-prima da arquitetura do século XX, uma “utopia brutalista” que materializou a esperança de um futuro melhor em meio ao cinza chumbo do pós-guerra. Para seus detratores, ao contrário, durante anos encarnou tudo o que podia dar errado no urbanismo moderno: estética áspera, gigantismo desumanizado e um labirinto difícil de amar.
Não surpreende que a imprensa sensacionalista tenha dado ao Barbican apelidos nada elogiosos. Em 2003, chegou a ser eleito “o edifício mais feio de Londres” em uma enquete pública, e décadas depois ainda aparecia em listas das estruturas “mais odiadas” do mundo. A ironia é que quem o tachava de monstro de concreto muitas vezes não conhecia – ou não valorizava – o que acontecia por dentro. Porque, embora externamente exiba o aspecto severo de uma fortaleza distópica, por dentro o Barbican sempre foi sinônimo de cultura, comunidade e até calor humano. Basta percorrer seus foyers banhados por luz dourada, suas exposições de arte ou seus concertos lotados para entender por que, apesar de tudo, a rainha da Inglaterra o proclamou uma maravilha moderna e por que tantos moradores se apaixonaram por este enclave singular.
As críticas, no entanto, não se limitaram ao aspecto estético. O processo de construção do Barbican foi lendário tanto por sua ambição quanto por suas dificuldades. As obras – iniciadas em 1962 – logo se tornaram palco de uma feroz batalha sindical. As condições no canteiro eram duríssimas: o tamanho colossal do projeto fez com que várias construtoras trabalhassem simultaneamente, e a segurança deixava muito a desejar. Houve acidentes fatais e inúmeros feridos, o que levou a greves massivas de operários exigindo melhorias. Aqueles protestos ficaram conhecidos como a “Batalha do Barbican”, uma das maiores mobilizações trabalhistas do setor no Reino Unido. Em 1965, quando uma empresa tentou obrigar os trabalhadores a renunciar ao direito de greve, mais de 2.000 trabalhadores de toda Londres pararam em solidariedade, paralisando o andamento do projeto. Os atrasos se acumularam e os custos dispararam. A Cidade de Londres, desesperada, chegou a processar os arquitetos Chamberlin, Powell & Bon durante a execução, culpando-os por mudanças tardias e sobrecustos. A disputa foi resolvida fora dos tribunais, mas refletiu a tensão e o caos nos bastidores. Quando finalmente o Barbican Centre abriu em 1982, seu orçamento final girava em torno de 159 milhões de libras (mais de R$ 1,1 milhão, na cotação atual) mais de dez vezes o previsto inicialmente. A imprensa da época o descreveu como “um presente do pós-guerra tão caro quanto controverso” para a nação. Ou seja, mesmo antes de os primeiros espectadores aplaudirem uma sinfonia em sua sala de concertos, o Barbican já era polêmico por sua conta e pelo longo caminho acidentado até sua inauguração.
Paradoxalmente, com o passar do tempo, muitas daquelas críticas severas deram lugar ao reconhecimento. O que nos anos 1980 era considerado um exemplo do “brutalismo frio” hoje é revalorizado como um clássico da arquitetura moderna. Em 2001, o complexo Barbican foi declarado estrutura de interesse histórico-artístico (Grau II), protegendo-o legalmente como patrimônio nacional. De ser menosprezado por alguns, passou a ser estudado em faculdades de arquitetura ao redor do mundo e celebrado em exposições fotográficas sobre beleza urbana inesperada. Sem dúvida, o Barbican continua sem deixar ninguém indiferente – “obra ambiciosa e única que mais divide o público”, como a crítica já o chamou – mas resistiu à prova do tempo, erguendo-se como um símbolo de sua era. Seus detratores podem continuar a vê-lo como um mastodonte cinza, mas para legiões de entusiastas ele se tornou uma joia retro-futurista, um refúgio de autenticidade em uma cidade cada vez mais homogênea.
Legado duradouro de um colosso urbano
O complexo Barbican é um exemplo destacado da arquitetura brutalista britânica e está catalogado como um conjunto de Grau II na lista de monumentos classificados do Reino Unido
Jchambers/Getty Images
Hoje, o Barbican ergue-se orgulhoso como um monumento vivo à visão utópica do pós-guerra e à ousadia do brutalismo britânico. Com mais de 50 anos, este colosso de concreto passou de experimento polêmico a tesouro arquitetônico de Londres. Basta um passeio por suas passarelas elevadas para sentir o peso e a grandiosidade de seu legado.
Sob os arcos gigantes de suas torres, entre sombras de concreto e jardins bem cuidados, ressoa a história de uma cidade que ousou sonhar grande quando tudo ao redor eram escombros. O Barbican continua sendo um lugar onde o tempo parece transcorrer de forma diferente: suas paredes contam a epopeia de milhares de dias de trabalho, de ideais sociais plasmados em planta e de lutas operárias por dignidade; seus espaços abertos convidam o visitante a descobrir a beleza oculta no brutal.
Ainda hoje, o complexo abriga milhares de moradores e recebe milhões de visitantes anuais que participam de concertos, exposições e festivais, maravilhados com o fato de que um enclave tão distinto e audacioso pôde se estabelecer no coração de uma metrópole tradicional. Nas palavras de um arquiteto residente, viver no Barbican é habitar “um mundo feliz e novo”, um testemunho da fé de que aquilo que construímos pode nos permitir viver vidas melhores. E esse, talvez, seja o maior triunfo do Barbican: ter transcendido as controvérsias iniciais para se consolidar como um legado duradouro de esperança, inovação e arte urbana no coração de Londres.
*Matéria originalmente publicada na Architectural Digest México
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O que se seguiu foi uma odisseia de duas décadas de planejamento, projeto e construção. Peter “Joe” Chamberlin, Geoffry Powell e Christoph Bon – um trio de visionários influenciados pelas ideias do mestre Le Corbusier – conceberam o Barbican como a materialização de um ideal do pós-guerra. Sonharam com “uma cidade dentro da cidade” elevada acima do agito urbano, uma fortaleza moderna onde a vida comunitária floresceria isolada do caos metropolitano. Seus planos mostravam torres audaciosas e blocos residenciais rodeados por jardins, escolas, arte e cultura, tudo interligado em altura por passarelas para pedestres. Não seria uma urbanização comum: estava pensada para atrair profissionais jovens e cosmopolitas, amantes do design escandinavo, da vida mediterrânea e da sofisticação moderna. Em 1960, a Cidade de Londres nomeou oficialmente Chamberlin, Powell & Bon como arquitetos do projeto, embarcando-os em trinta anos de trabalho ininterrupto. Em setembro de 1963, as obras começaram em fases, mas nada seria fácil. O Barbican avançou contra vento e maré: enfrentou greves de trabalhadores, litígios e custos astronômicos antes de finalmente levantar o pano de seu grandioso palco brutalista.
Um bairro nascido das cinzas
A história do Barbican está indelévelmente marcada por sua origem dramática. Após a destruição causada pelo bombardeio aéreo, Londres se deparou com uma página em branco bem no coração da cidade. Nos anos 1950, enquanto algumas vozes pressionavam para erguer torres de escritórios na área devastada, uma facção de visionários defendeu com paixão a ideia de repovoar a região com moradias. Temiam que a cidade perdesse sua alma – e até sua representação parlamentar – caso não recuperasse habitantes depois da redução populacional. A aposta era audaciosa: alguém toparia viver entre arranha-céus financeiros? Contra todas as expectativas, e após intensos debates, os reformistas conseguiram aprovar um plano residencial para o Barbican por uma margem muito estreita.
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Vai construir ou reformar? Seleção Archa + Casa Vogue ajuda você a encontrar o melhor arquiteto para seu projeto
Com o motor político acionado, foi incumbido a Chamberlin, Powell & Bon – já consagrados por seu trabalho inovador na vizinha Golden Lane Estate – projetar um bairro completo e autossuficiente. Em 1959, apresentaram um plano mestre que impressionava pela ousadia. Imaginavam moradias para 7.000 pessoas, distribuídas em torres e blocos escalonados ao redor de praças elevadas, com todos os serviços necessários: jardins, comércios, um lago artificial, escolas, bibliotecas e espaços culturais. O Ministério da Habitação apoiou a ideia, mesmo sabendo que renunciava à elevada rentabilidade que escritórios e comércios teriam proporcionado, convencido de que era mais valioso recuperar um verdadeiro bairro residencial no coração do distrito financeiro. Essa visão idealista – uma utopia de comunidade em altura – foi formalmente aprovada em 1957, com a condição de que a própria Corporação da Cidade de Londres executasse a obra. Nenhum investidor privado se atrevia a assumir um projeto tão complexo e sem garantias de sucesso, então a Cidade assumiu o risco e também a honra de construir o que chamou de seu “presente para a nação”.
A visão brutalista: arquitetura utópica em concreto
As fontes e lago artificial fazem parte do charme do Barbican, criando espaços para relaxamento e lazer, além de suavizar a brutalidade do concreto
Sergio Amiti/Getty Images
O projeto do Barbican Centre foi uma aposta na arquitetura brutalista em sua máxima expressão. Ao longo das décadas de 1960 e 1970, guindastes ergueram uma paisagem de concreto nunca antes vista: 13 blocos residenciais em terraços de sete andares, coroados por distintas cúpulas brancas, e três imponentes torres triangulares de 42 pavimentos, cujos perfis serrilhados recortam o céu. Os edifícios foram distribuídos em torno de pátios elevados, sobre plataformas para pedestres afastadas do tráfego, formando uma trama labiríntica.
O conjunto incorporou até mesmo relíquias históricas do local, como a antiga igreja medieval de St Giles Cripplegate – com seu inconfundível telhado verde – e trechos da muralha romana de Londres, integrando-os respeitosamente aos volumes modernos. Nada semelhante existia na capital britânica: o Barbican emergiu como um colosso vanguardista de concreto armado que, segundo seus próprios criadores, evocava tanto a solidez de uma fortaleza romana quanto a funcionalidade depurada do racionalismo europeu.
A escolha do material foi decisiva. Em plena era de experimentação, Chamberlin, Powell & Bon apostaram no “béton brut”, o concreto cru e sem adornos que Le Corbusier havia elevado a linguagem escultórica. Aqui, esse concreto bruto atingiu uma escala monumental e uma textura única: centenas de operários passaram meses, martelo na mão, executando o bush-hammering em cada superfície, esculpindo com cinzel milhões de pequenas crateras nas paredes e colunas. Esse acabamento artesanal unificou a “pele” de todo o complexo com um relevo rugoso, quase orgânico, que disfarça as juntas e confere profundidade visual ao cinza uniforme.
O crítico Jonathan Glancey descreveria mais tarde o Barbican como “uma fortaleza moderna condizente com seu nome, construída inteiramente em concreto escovado”. E é que o próprio nome “Barbican” remete a uma torre defensiva medieval, um aceno perfeito para um conjunto que parecia um castelo futurista erguido sobre a cidade. Os maciços pilares cilíndricos sustentam as estruturas, criando pórticos enormes, enquanto os terraços ajardinados e os espelhos d’água adicionam uma suavidade inesperada ao entorno, contrapondo com verde a dureza do cimento.
Até mesmo os detalhes utilitários foram considerados parte do projeto: passarelas elevadas que conectam edifícios, praças internas com pisos de tijolo avermelhado, jardins privados para os residentes e floreiras integradas a cada varanda para espalhar vida vegetal pela paisagem brutalista. O resultado foi um conjunto coeso e autossuficiente, ao mesmo tempo austero e exuberante, que materializava a utopia urbana sonhada por seus arquitetos – um novo tipo de bairro vertical onde cada elemento, das torres ao último puxador, respondia a uma visão integral.
A escala e o detalhamento do Barbican impressionavam: mais de 2.000 residências de tipologias diversas – estúdios, dúplex, casas geminadas – projetadas com um padrão de luxo pouco comum em empreendimentos públicos da época. Os interiores eram modernos e elegantes, equipados com aquecimento por piso radiante e cozinhas planejadas de alto padrão, pensadas para um estilo de vida sofisticado. Cada apartamento contava com amplas janelas do chão ao teto e uma varanda privativa adornada com floreiras originais, convidando os moradores a desfrutar de vistas que iam desde jardins íntimos até o skyline de Londres. Nenhum detalhe ficou ao acaso: os arquitetos até desenharam maçanetas e luminárias, buscando uma harmonia estética total. Por toda parte se percebia a dualidade característica do Barbican: de um lado, a crueza geométrica do concreto; de outro, toques acolhedores de mogno nos interiores e a presença constante da natureza domesticada em meio ao concreto.
Uma cidade dentro da cidade: vida e usos do Barbican
O complexo foi projetado pelo escritório de arquitetura Chamberlin, Powell & Bon, cuja primeira obra foi o Golden Lane Estate
Tatiana Sviridova/Getty Images
Quando finalmente abriu suas portas, o Barbican revelou ser muito mais que um complexo residencial – era um verdadeiro ecossistema urbano autossuficiente. Oficialmente inaugurado em março de 1982 pela rainha Elizabeth II, que o aclamou como “uma das maravilhas do mundo moderno”, o Barbican Centre coroou o projeto ao dotá-lo de um coração cultural pulsante. Este centro de artes cênicas e visuais, incrustado no pódio central, abriga um grande teatro com 1.200 assentos, uma sala de concertos de classe mundial, galerias de arte, três cinemas, uma biblioteca pública e até uma estufa tropical escondida entre seus terraços.
Desde o início, os planejadores imaginaram que os moradores teriam tudo ao seu alcance: além das residências de luxo, contariam com lojas, restaurantes, pubs, escolas e até uma igreja medieval dentro do mesmo perímetro. E assim foi. Nos arredores do Barbican, ergueram-se a nova sede da Guildhall School of Music & Drama e a City of London School for Girls, integrando a educação ao cotidiano do bairro. Também foi inaugurado em uma das extremidades o Museu de Londres (hoje realocado), reforçando o caráter cultural do entorno. No nível do Highwalk – aquelas passarelas elevadas que cruzam o complexo – surgiram cafés, galerias e espaços comunitários onde se pode passear rodeado de arte pública e jardins suspensos sem tocar o chão da rua.
Para seus moradores, o Barbican oferecia uma vida sem paralelo na cidade contemporânea. Cerca de 4.000 habitantes chegaram a ocupar seus 2.113 apartamentos, criando uma comunidade incomum de profissionais, artistas e intelectuais convivendo nessa bolha modernista. Viver ali rapidamente se tornou um símbolo de status cultural: “Residir no Barbican confere uma credibilidade cultural que o dinheiro raramente pode comprar”, diziam alguns críticos. O Barbican funcionava quase como um clube exclusivo: muitos de seus primeiros inquilinos eram arquitetos, escritores, músicos e personalidades do mundo artístico atraídos pela singularidade do local. Da janela de um andar alto, podia-se contemplar a tranquilidade dos jardins e lagos internos enquanto a agitação de Londres se desenrolava aos pés do edifício, mais de 30 metros abaixo. Essa desconexão deliberada proporcionava uma calma quase suburbana em pleno centro da cidade.
Dentro dos apartamentos, os detalhes de design – escadas flutuantes, acabamentos em madeira nobre, distribuição modular engenhosa – refletiam o cuidado com a qualidade de vida que os arquitetos perseguiram com fervor. Ao sair para passear, os vizinhos podiam se encontrar para conversar à beira do lago artificial com carpas ou desfrutar de um concerto da London Symphony Orchestra sem sequer sair do complexo. Cada dia podia transcorrer inteiramente dentro do Barbican: do quarto ao escritório, de lá a um jantar na varanda de um restaurante interno, depois a uma peça de teatro sob o mesmo teto e, finalmente, de volta para casa caminhando sob as estrelas, longe do tráfego. O Barbican cumpria assim seu propósito fundacional: ser um refúgio integral e autossuficiente, uma cidade utópica em miniatura erguida no coração de Londres.
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Beleza brutal vs críticas severas
O Barbican Centre materializa a utopia urbana sonhada por seus arquitetos de criar um novo tipo de bairro vertical. No complexo, há ao todo 2.113 apartamentos
Matt Mawson/Getty Images
Desde a sua concepção, o Barbican tem suscitado polêmicas acaloradas e dividido opiniões como poucos edifícios. Para seus admiradores, representa uma obra-prima da arquitetura do século XX, uma “utopia brutalista” que materializou a esperança de um futuro melhor em meio ao cinza chumbo do pós-guerra. Para seus detratores, ao contrário, durante anos encarnou tudo o que podia dar errado no urbanismo moderno: estética áspera, gigantismo desumanizado e um labirinto difícil de amar.
Não surpreende que a imprensa sensacionalista tenha dado ao Barbican apelidos nada elogiosos. Em 2003, chegou a ser eleito “o edifício mais feio de Londres” em uma enquete pública, e décadas depois ainda aparecia em listas das estruturas “mais odiadas” do mundo. A ironia é que quem o tachava de monstro de concreto muitas vezes não conhecia – ou não valorizava – o que acontecia por dentro. Porque, embora externamente exiba o aspecto severo de uma fortaleza distópica, por dentro o Barbican sempre foi sinônimo de cultura, comunidade e até calor humano. Basta percorrer seus foyers banhados por luz dourada, suas exposições de arte ou seus concertos lotados para entender por que, apesar de tudo, a rainha da Inglaterra o proclamou uma maravilha moderna e por que tantos moradores se apaixonaram por este enclave singular.
As críticas, no entanto, não se limitaram ao aspecto estético. O processo de construção do Barbican foi lendário tanto por sua ambição quanto por suas dificuldades. As obras – iniciadas em 1962 – logo se tornaram palco de uma feroz batalha sindical. As condições no canteiro eram duríssimas: o tamanho colossal do projeto fez com que várias construtoras trabalhassem simultaneamente, e a segurança deixava muito a desejar. Houve acidentes fatais e inúmeros feridos, o que levou a greves massivas de operários exigindo melhorias. Aqueles protestos ficaram conhecidos como a “Batalha do Barbican”, uma das maiores mobilizações trabalhistas do setor no Reino Unido. Em 1965, quando uma empresa tentou obrigar os trabalhadores a renunciar ao direito de greve, mais de 2.000 trabalhadores de toda Londres pararam em solidariedade, paralisando o andamento do projeto. Os atrasos se acumularam e os custos dispararam. A Cidade de Londres, desesperada, chegou a processar os arquitetos Chamberlin, Powell & Bon durante a execução, culpando-os por mudanças tardias e sobrecustos. A disputa foi resolvida fora dos tribunais, mas refletiu a tensão e o caos nos bastidores. Quando finalmente o Barbican Centre abriu em 1982, seu orçamento final girava em torno de 159 milhões de libras (mais de R$ 1,1 milhão, na cotação atual) mais de dez vezes o previsto inicialmente. A imprensa da época o descreveu como “um presente do pós-guerra tão caro quanto controverso” para a nação. Ou seja, mesmo antes de os primeiros espectadores aplaudirem uma sinfonia em sua sala de concertos, o Barbican já era polêmico por sua conta e pelo longo caminho acidentado até sua inauguração.
Paradoxalmente, com o passar do tempo, muitas daquelas críticas severas deram lugar ao reconhecimento. O que nos anos 1980 era considerado um exemplo do “brutalismo frio” hoje é revalorizado como um clássico da arquitetura moderna. Em 2001, o complexo Barbican foi declarado estrutura de interesse histórico-artístico (Grau II), protegendo-o legalmente como patrimônio nacional. De ser menosprezado por alguns, passou a ser estudado em faculdades de arquitetura ao redor do mundo e celebrado em exposições fotográficas sobre beleza urbana inesperada. Sem dúvida, o Barbican continua sem deixar ninguém indiferente – “obra ambiciosa e única que mais divide o público”, como a crítica já o chamou – mas resistiu à prova do tempo, erguendo-se como um símbolo de sua era. Seus detratores podem continuar a vê-lo como um mastodonte cinza, mas para legiões de entusiastas ele se tornou uma joia retro-futurista, um refúgio de autenticidade em uma cidade cada vez mais homogênea.
Legado duradouro de um colosso urbano
O complexo Barbican é um exemplo destacado da arquitetura brutalista britânica e está catalogado como um conjunto de Grau II na lista de monumentos classificados do Reino Unido
Jchambers/Getty Images
Hoje, o Barbican ergue-se orgulhoso como um monumento vivo à visão utópica do pós-guerra e à ousadia do brutalismo britânico. Com mais de 50 anos, este colosso de concreto passou de experimento polêmico a tesouro arquitetônico de Londres. Basta um passeio por suas passarelas elevadas para sentir o peso e a grandiosidade de seu legado.
Sob os arcos gigantes de suas torres, entre sombras de concreto e jardins bem cuidados, ressoa a história de uma cidade que ousou sonhar grande quando tudo ao redor eram escombros. O Barbican continua sendo um lugar onde o tempo parece transcorrer de forma diferente: suas paredes contam a epopeia de milhares de dias de trabalho, de ideais sociais plasmados em planta e de lutas operárias por dignidade; seus espaços abertos convidam o visitante a descobrir a beleza oculta no brutal.
Ainda hoje, o complexo abriga milhares de moradores e recebe milhões de visitantes anuais que participam de concertos, exposições e festivais, maravilhados com o fato de que um enclave tão distinto e audacioso pôde se estabelecer no coração de uma metrópole tradicional. Nas palavras de um arquiteto residente, viver no Barbican é habitar “um mundo feliz e novo”, um testemunho da fé de que aquilo que construímos pode nos permitir viver vidas melhores. E esse, talvez, seja o maior triunfo do Barbican: ter transcendido as controvérsias iniciais para se consolidar como um legado duradouro de esperança, inovação e arte urbana no coração de Londres.
*Matéria originalmente publicada na Architectural Digest México
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