Os rios escondidos de São Paulo: descubra a rede hídrica enterrada sob as ruas

É durante o verão, época em que as chuvas se intensificam, que os rios de São Paulo ganham grande evidência. Hoje vistos como sinônimos de problemas como enchentes, alagamentos e mau cheiro, os cursos de água tiveram papel fundamental no surgimento, no nome e na história da capital paulista.
Apesar da paisagem urbana dominada por concreto e avenidas congestionadas, rios e córregos ainda correm sob as ruas, prédios e praças da metrópole. Segundo dados da Prefeitura, São Paulo tem oficialmente 287 cursos de água entre rios, riachos e córregos, sendo uma parte considerável deles subterrâneos.
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“Enterrados vivos”, nas palavras do arquiteto e urbanista social José Bueno, eles seguem fluindo em silêncio, numa espécie de subterrâneo esquecido que, aos poucos, começa a voltar à superfície, seja pela força das mudanças climáticas, seja pelo trabalho de coletivos e moradores que buscam recontar a história dessas águas.
“A mudança acontece quando a gente percebe que os rios não morreram. Eles foram enterrados vivos”, diz José, também cofundador do coletivo Rios e Ruas, que há 15 anos se dedica a revelar esses cursos de água escondidos, promover caminhadas, experiências urbanas e reconectar cidadãos ao território.
A pintura Várzea do Carmo e Rio Tamanduateí (1858), de José Wasth Rodrigues, retrata uma área de grande relevância para a cidade de São Paulo à época, marcada pelo intenso fluxo fluvial — uma paisagem que hoje quase não é lembrada dessa forma
Acervo do Museu Paulista da USP/Coleção José Wasth Rodrigues; José Rosael e Hélio Nobre/Reprodução
Uma cidade edificada sobre rios
A capital paulista já foi conhecida como São Paulo de Piratininga — Piratininga era o antigo nome do Rio Tamanduateí e tem origem indígena; em tupi, significa “peixe seco”, referência a um fenômeno recorrente nas variações do nível do rio: quando a água baixava, alguns peixes ficavam presos, morriam e secavam. As carcaças atraíam formigas e, consequentemente, tamanduás.
Durante a colonização portuguesa e a instalação dos jesuítas na região, optou-se por fundar a vila no mesmo território já ocupado pelos povos indígenas: um ponto plano entre os rios Tamanduateí e Anhangabaú, favorecido pelo fácil acesso e pela circulação por caminhos fluviais. Esses cursos d’água, portanto, assumiram papel central na comercialização de mercadorias e no desenvolvimento do comércio popular.
Rio Tamanduateí e, ao fundo, Mosteiro e Igreja de São Bento, no Triângulo Histórico, hoje conhecido como centro histórico de São Paulo. Fotografia de Militão Augusto de Azevedo 1862
Flickr/Militão Augusto de Azevedo;Bianca Bueno/Reprodução
A expansão do café e a instalação da ferrovia São Paulo Railway, no final do século 19, foram importantes marcos da virada para o século 20, na qual a capital paulista vivenciou uma urbanização acelerada pautada em um projeto de modernização.
Com influência dos ideais europeus, a proposta era “embelezar” e remodelar o município para moldes metropolitanos, e, nesse cenário, os rios passaram a ser vistos como obstáculos. “O poder público passou a enxergar rios como galerias de drenagem, não como personagens vivos da cidade”, explica José. Argumentos higienistas e sanitaristas também fundamentavam essas políticas, que viam na contenção dos rios sinônimo da eliminação de doenças e o favorecimento da limpeza urbana.
As reformas coordenadas pelo prefeito Prestes Maia consolidaram o modelo rodoviarista e promoveram inúmeras mudanças nos rios da cidade. Fotografia parte da monografia de Prestes Maia, Melhoramentos de São Paulo, de 1945. No centro da imagem, Vale do Anhagabaú e o Viaduto do Chá
Prefeitura de São Paulo;Seade/Prestes Maia/Reprodução
Uma das importantes obras para essa transformação foi a construção do Viaduto do Chá, em 1892, sobre o Vale do Anhangabaú, que ligava a parte central ao novo polo, dos Jardins e Higienópolis, em que as classes mais abastadas passaram a residir. Outro aspecto importante foi o Plano de Avenidas, das décadas de 1920 e 1930, proposto pelo engenheiro e ex-prefeito, Prestes Maia, que retificou cursos naturais, tamponou córregos e converteu várzeas em grandes eixos viários, alinhado aos interesses dos empreendedores da época.
“São Paulo é uma das cidades que mais têm rios no mundo, mas eles foram tratados como oportunidades para se asfaltar, canalizar e criar avenidas”, sintetiza Gabriel Neistein, arquiteto e urbanista.
Redescobrindo os rios subterrâneos paulistanos
Oficialmente, os cursos de água paulistanos totalizam 287, porém esse número passou a ser revisitado e questionado por pesquisadores, coletivos, ativistas e interessados pela temática.
Foi durante a pandemia de Covid-19 que Gabriel descobriu que um córrego passava exatamente um quarteirão abaixo de sua casa na Vila Mariana: o Córrego do Sapateiro, que alimenta os lagos do Parque do Ibirapuera. A partir daí nasceu um projeto de demarcação visual e mapeamento, em parceria com amigos e com a Associação de Moradores do bairro.
O projeto ‘por aqui passa o córrego do sapateiro’ surgiu ainda durante a pandemia a partir da constatação de um desconhecimento do próprio arquiteto Gabriel Neistein de um córrego localizado no bairro onde viveu toda a sua vida
Max Gonik/Reprodução
O movimento, quase artesanal, gerou um efeito comunitário surpreendente. A ideia inicial era fazer o córrego conhecido por mais pessoas, usando o mapa, enquanto ferramenta política e de comunicação pública.
“O projeto começou como um pequeno mapa, mas foi rapidamente incorporado pelo bairro”, relembra Gabriel. Nesse primeiro momento, havia o trajeto do rio acompanhado da legenda “por aqui passa o córrego do Sapateiro”.
Em 2021, houve uma articulação com outras pessoas do bairro para expandir o projeto inicial do ‘por aqui passa o córrego do sapateiro’
Max Gonik/Reprodução
Como continuidade, foi elaborado um mapa maior de 3 x 2,4 metros, com a participação de moradores e colaboração comunitária, que apontaram os pontos de afloramento visíveis e lugares referenciais. Além disso, o arquiteto construiu um mapa digital traçando o percurso do córrego, disponível online.
Iniciado entre 2020 e 2021, o projeto foi retomado no contexto da 14ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo — Extremos: Arquiteturas para um mundo quente, em novembro 2025. A proposta, desta vez, foi criar um percurso que partisse do topo do espigão e seguisse até a Oca, revelando os indícios hídricos presentes no território onde a bienal se insere e reativando os stencils que deram origem à ideia de Gabriel anos antes.
A iniciativa Rios e Ruas surgiu quando José Bueno e Luiz de Campos Jr foram em busca das nascentes de um riacho localizado no Butantã, o Iquiririm
Facebook/RIOS E RUAS/Reprodução
Com propósito semelhante, surgiu a iniciativa Rios e Ruas, fundada por José Bueno e pelo geógrafo Luiz de Campos Jr. O projeto nasceu da surpresa de José ao descobrir a presença de um curso d’água em um ponto aparentemente improvável da cidade. “Em um café, Luiz — que pesquisa o tema há anos — me mostrou um mapa com os rios de São Paulo e percebi que não conhecia a cidade onde vivia há tanto tempo”, relembra.
Luiz então convidou José a procurar um desses rios nas proximidades e, perto da Universidade de São Paulo (USP), encontraram um dos afloramentos do riacho Iquiririm — nome atribuído por eles em referência a uma rua que acompanha parte de seu percurso. “Do tupi‑guarani, Ikiririm significa ‘rio silencioso’, e nós conseguimos não apenas ouvir a voz desse rio, mas também recuperar sua memória e seu nome, que passou a circular entre os moradores e frequentadores da região”, pontua o urbanista.
Nos passeios promovidos pelo Rios e Ruas, a proposta é encontrar fluxos de água em diferentes trajetos pela cidade
Facebook/RIOS E RUAS/Reprodução
A partir daí, floresceu a ideia de transformar o Rios e Ruas em uma iniciativa que oferece experiências aos participantes e fomenta reflexões sobre a relação entre o sujeito, a cidade e o território. Uma das frentes do grupo é promover percursos guiados por São Paulo, cujo objetivo é reconhecer indícios da presença da água em rios esquecidos ou pouco conhecidos. Os passeios e demais ações da iniciativa — hoje vinculada ao Instituto Harmonia — são divulgados periodicamente em suas páginas e canais oficiais.
Novas relações com a água na cidade
Tais projetos — tanto a iniciativa do Rios e Ruas quanto a proposta de Gabriel, entre tantas outras — convergem no esforço de resgatar a memória dos fluxos de água ocultos no subterrâneo da capital paulista e, ao mesmo tempo, propor novas formas de enxergar e se relacionar com os rios urbanos.
O rio Tietê é um dos muitos exemplos de cursos d’água de São Paulo que foram retificados e, por isso, sofrem com grandes enchentes durante o período de chuvas, consequência direta das alterações impostas ao seu fluxo natural
Flickr/Fernando Stankuns/Creative Commons
Em um cenário de agravamento do aquecimento global e de crise climática, pensar na maneira que o bairro, a cidade e o país tem encarado os recursos hídricos e sua gestão na realidade urbana é mais do que fundamental. “Se não fizermos o movimento reverso e devolver espaço aos rios, vamos viver cenários ainda mais dramáticos”, alerta Gabriel.
Reabrir rios, renaturalizar córregos, restaurar várzeas, redesenhar avenidas e replantar matas ciliares tem sido iniciativas já pesquisadas e adotadas em diferentes partes do mundo e no Brasil. Um destaque é o Grupo Metrópole Fluvial, que vem se dedicando a projetos como os Estudos de Pré‑Viabilidade do Hidroanel Metropolitano de São Paulo, uma rede de vias navegáveis formada pelos rios Tietê e Pinheiros, pelas represas Billings e Taiaçupeba e por um canal artificial que conecta esses reservatórios.
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Para o arquiteto Gabriel, a tarefa envolve estratégia, engenharia, política pública, desejo coletivo e faz parte do propósito do campo. “A arquitetura existe para pensar na humanidade na totalidade, e o uso e as camadas simbólicas do ambiente e da sustentabilidade devem ser centros das nossas ações projetuais”, ele afirma.
Para José, essa resposta, além do coletivo, passa pela participação cidadã. “Somos confluência e devemos levar isso em consideração em mobilizações de pequena escala até políticas públicas”, reflete o urbanista.

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