A praça Praça do Patriarca não quer ser aquário: a importância de preservar o espaço público

Quando voltei à Praça do Patriarca nesta semana, percebi que caminhava não apenas por um espaço urbano, mas por um capítulo inteiro da história da cidade de São Paulo. A marquise criada por Paulo Mendes da Rocha pairava sobre mim como uma presença silenciosa. Sua estrutura de aço, sua lâmina metálica, seu gesto amplo. Tudo isso parecia conversar com um passado profundo da própria praça. Um passado que, se ignorado, impossibilita compreender o que está em disputa agora.
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Pouca gente lembra que a Praça do Patriarca é um lugar de camadas. No século 19 era apenas um ponto de passagem entre a antiga Rua Direita e o Largo São Bento. Depois, se tornou um núcleo importante do centro comercial em expansão. O desenho atual resultou de sucessivas tentativas de reorganizar o centro. Da maior parte das intervenções antigas quase nada restou, exceto dois marcos que resistiram ao tempo, a Igreja de Santo Antonio e a pequena estátua do Patriarca.
Nos anos 1990, a praça estava degradada. Havia se tornado um terminal improvisado de ônibus, tomado pelo barulho e pela fumaça. A escala para o pedestre havia desaparecido. Foi nesse contexto que surgiu a necessidade de recuperar o centro histórico e entregar a tarefa a um arquiteto capaz de reorganizar o espaço com clareza e generosidade. Paulo Mendes da Rocha foi essa escolha.
A Praça do Patriarca é um exemplo da concentração de imóveis tombados de grande valor histórico e arquitetônico no centro de São Paulo. Ao seu redor, estão o Edifício Matarazzo, de 1939, tombado em 1992, hoje, sede da Prefeitura de São Paulo; o Othon Palace Hotel, de 1954, tombado em 1992, que ficou desocupado por uma década até ser incorporado também à prefeitura; e a Igreja de Santo Antônio, a mais antiga igreja remanescente da cidade, do século 16, tombada em 1970
Pexels/Caroline Cagnin/Creative Commons
Sua marquise não é apenas cobertura. É uma interpretação crítica da cidade. Ela organiza o espaço a partir da luz e do vazio. Um plano metálico que flutua, sustentado por tensores, devolvendo à praça a sensação de amplitude. Esse gesto espacial sintetiza uma visão muito presente na obra do arquiteto. Ele sempre tratou a arquitetura como campo de transformação social e não apenas como técnica. Sua trajetória inteira está marcada pela crença de que o espaço deve ser público, inclusivo e afirmativo. Nada na marquise foi pensado para segregar: tudo nela foi pensado para abrir.
Por isso, a proposta da Prefeitura de instalar painéis de vidro no térreo gerou tanta preocupação entre técnicos, arquitetos, estudiosos e cidadãos comuns. Além de uma intervenção funcional, a solução afetaria a leitura do conjunto. Criaria limites onde o projeto original cria continuidade. Interromperia a permeabilidade visual que conecta o Viaduto do Chá, a Igreja de Santo Antonio, o piso de mosaico português e o próprio corpo da marquise. Mesmo sem ser materialmente opaco, o vidro introduz barreiras simbólicas que reduzem a força da praça.
Na marquise da Praça do Patriarca, pedestres atravessam o piso de mosaico português sob a estrutura branca de Paulo Mendes da Rocha
Mylla Ghdv/Flickr/Creative Commons
Foi justamente diante desse risco que o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) teve papel decisivo. Ao analisar a proposta, o órgão concluiu que o fechamento comprometia a relação espacial entre a marquise e seu entorno e prejudicava a fruição das perspectivas históricas da área. Assim, decidiu barrar o envidraçamento.
Para mim, essa decisão representa mais do que uma simples reprovação técnica. É um gesto de sensatez que protege um dos espaços mais significativos do centro. É a defesa de uma obra que se tornou referência internacional e, sobretudo, a defesa da ideia de que o espaço público deve continuar público. O parecer do órgão afirma algo essencial. A cidade não precisa de mais barreiras. Precisa de manutenção, cuidado e respeito ao patrimônio.
A praça sofre com abandono, é verdade. O piso está desgastado, alguns pontos da estrutura metálica precisam de recuperação, e a circulação é muitas vezes confusa. Nada disso se resolve com paredes de vidro. São problemas de gestão e manutenção rotineira, e não falhas do projeto original. A tentação de fechar espaços é sempre grande, pois cria a ilusão de controle. Mas a praça não nasceu para ser controlada. Nasceu para acolher. Nasceu para ser passagem, encontro, sombra e respiro.
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Penso em Paulo Mendes da Rocha cada vez que caminho por ali. Ele enxergava a cidade como obra coletiva e acreditava que a arquitetura era instrumento de emancipação. Na Praça do Patriarca, esse ideal se materializa com clareza. A marquise é convite e não filtro. É portal e não barreira. É gesto que devolve dignidade ao centro e não peça que o submete a regras excludentes.
Ao sair da praça naquela manhã, olhei para cima e vi a grande superfície metálica recortando o céu com sua precisão silenciosa. A decisão do Condephaat de impedir o fechamento me pareceu, ali, um sinal de que ainda existe espaço para escolhas inteligentes e sensíveis na gestão da cidade. São Paulo não precisa transformar sua praça em aquário. Precisa apenas a preservar com o cuidado que uma obra desse porte e desse significado merece.

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