A trajetória do casal Virgínia e Vilanova Artigas na arte e na arquitetura

Em um baile de gala em que nenhum dos dois estava acostumado a ir, eles se encontraram por acaso. Na última dança do casal, o jovem arquiteto pousou um dos dedos no decote da artista plástica, que tinha a mesma idade. Ela permitiu. Era a senha para o surgimento de uma relação que duraria mais de 40 anos, pautada pelo amor e pela amizade. João Batista Vilanova Artigas e Virgínia Camargo filiariam-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e tinham em comum o ideário de justiça e inclusão social. Mas vinham de mundos bem diferentes.
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Nascido em 1915, em Curitiba, em uma família tradicionalista, Vilanova Artigas contava com a erudição dos meios acadêmicos. Virgínia, que se tornaria Virgínia Artigas com o casamento dos dois em 1943, era de São Carlos, interior de São Paulo, penúltima de oito filhos e dona de uma faceta mais popular. Não é à toa que ela perguntara a Artigas o que fazia um arquiteto.
Desenho livre de Artigas com caneta hidrocor, da década de 1970
Acervo IVVA/Divulgação
Ele, cheio de amigos em sua área, foi um pai liberal para os filhos na adolescência. Ela possuía doloridos joanetes, era boa de costura e gostava de Carnaval. Unidos, eles viveram a atuação profissional de cada um, e histórias políticas contra posturas antidemocráticas, sobretudo durante a ditadura militar, a partir de 1964.
A família de Artigas não digeria bem sua ideologia de esquerda e a união com Virgínia — que chegou a ser confundida por eles como uma “francesa”, designação da época para prostituta. O casal soube superar essas e outras vicissitudes.
Escola Paulista
Vista exterior do edifício da FAU-USP, inaugurado em 1969
Gentilmente cedida por Nelson Kon/Divulgação
Formado como engenheiro arquiteto pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), Vilanova Artigas foi líder do movimento denominado Escola Paulista de Arquitetura, baseada no brutalismo. Seus trabalhos exibiam, por exemplo, estruturas monumentais e concreto aparente — material que ia de encontro ao preexistente e significou uma oposição estética ao regime ditatorial.
Aquarela do arquiteto para projeto de residência realizado entre 1940 e 1941 para a Construtora Marone & Artigas
Acervo IVVA/Divulgação
Ele projetou a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da universidade (FAU-USP). O prédio sem portas, com forte apelo de transparência e integração entre os indivíduos, foi inaugurado em 1969. O arquiteto também concebeu a pedagogia da faculdade, caracterizada por um equilíbrio entre a ênfase para a técnica ensinada na Poli e a estética exacerbada apregoada pela Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro.
RETRATO | O arquiteto Vilanova Artigas
Acervo IVVA/Divulgação
No final do ano anterior à inauguração do edifício — que se tornaria obra-prima de Artigas —, houve o agravamento do regime militar com o Ato Institucional número 5 (AI-5). O arquiteto foi proibido de lecionar, preso por 14 dias e, com receio do que poderia acontecer, exilou-se no Uruguai. Meses difíceis aqueles. Virgínia, com os dois filhos, Rosa e Júlio Artigas, chegou a dirigir um fusquinha até o país vizinho desafiando a inspeção de fronteira, convencida afinal de que os três iriam fazer turismo. Na verdade, a esposa levava ao marido algum dinheiro, conseguido com a venda de um quadro de Volpi e de uma perua DKW 1958.
Registros engajados
Em paralelo à vida acadêmica de Vilanova Artigas, Virgínia dedicava-se à arte, tendo uma espécie de compromisso de registrar com seus traços greves e manifestações, entre outros movimentos populares. Mas não só.
RETRATO | A autora Virgínia Artigas em casa, em 1976
Acervo IVVA/Divulgação
À época em que Artigas e ela se conheceram, a jovem trabalhava durante o dia e à noite frequentava aulas de modelo vivo no ateliê de Francisco Rebolo, que integraria o Grupo Santa Helena. Conheceu nomes como Aldo Bonadei e Alfredo Volpi, além de estudar escultura com Bruno Giorgi. Foi nas aulas do Curso Livre da Escola de Belas Artes que conheceu seu companheiro de jornada.
Ilustração em nanquim de Virgínia Artigas para folheto do Movimento Feminino pela Paz, de 1952
Acervo IVVA/Divulgação
Eles foram morar na Casinha, de 1942, considerada uma das primeiras manifestações de arquitetura moderna no Brasil, que Artigas projetou. Era localizada no bairro paulistano do Campo Belo, então periferia da cidade. Depois, no mesmo terreno, o arquiteto construiu uma casa maior, em 1949, onde viveu com a família — Virgínia morou ali quase até sua morte, em 1990, aos 75 anos. As construções hoje são tombadas pelo Condephaat.
A filha, Rosa Artigas, tornou-se historiadora, organizou todo o material deixado pelo pai e, mais recentemente, o da mãe. Ela é autora de Virgínia Artigas: histórias de arte e política (Ed. Terceiro Nome), em que se baseia boa parte deste texto, além do depoimento da autora — e mais quatro livros sobre Vilanova Artigas. O outro filho, Júlio, já falecido, em 2019, era também arquiteto.
Xilografia da artista pertencente à série Vietcongue, de 1972
Acervo IVVA/Divulgação
Exposição à vista
Para preservar e divulgar a vida e a obra do casal, foi fundado em 2020 o Instituto Virgínia e Vilanova Artigas (IVVA). A entidade sem fins lucrativos, presidida pelo neto e arquiteto Marco Artigas Forti, atualmente busca patrocínio para uma mostra em comemoração aos 110 anos de nascimento dos avós, a ser, a princípio, realizada no próximo mês de outubro na Escola da Cidade, em São Paulo. “Entre outras iniciativas, estamos costurando parcerias comerciais para o lançamento de produtos com desenhos exclusivos de Artigas e Virgínia”, escrevem em conjunto Marco e a conselheira Ana Luiza Sawaia, arquiteta. Para eles, o edifício da FAU-USP e muitas outras obras de Artigas refletem a preocupação do autor com a funcionalidade e a democratização do espaço.
No ano passado, o instituto doou o acervo de projetos do arquiteto para a FAU-USP. A mesma faculdade na qual ele teve de fazer um teste para voltar a ser professor titular em 1984, o que para muitos foi uma humilhação, tendo em vista o histórico do profissional na entidade. Ele se aposentaria um ano depois e logo viria a falecer, vítima de câncer, aos 69 anos, deixando um grande legado.
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Parece ter feito o tal teste — em que foi, como era de se esperar, aprovado, tendo apoio dos alunos, mas nem tanto da direção da faculdade na época — como uma ação exemplar. Afinal, outros também tinham sido proibidos de dar aulas, caso de Paulo Mendes da Rocha. Esse profissional sempre reconheceu em Artigas uma espécie de farol, enfatizando a influência que teve no trabalho dele, ganhador do Prêmio Pritzker em 2006. Curioso é que, ao contrário de Paulo, Artigas nunca vislumbrou uma carreira internacional, fincando os pés e suas obras em São Paulo.
Altos e baixos
Antes de a abertura chegar, a casa de Virginía e Artigas era sempre vigiada. Ali era um polo discreto de discussões sobre os caminhos a tomar diante do regime político instalado, que demorou 21 anos para terminar, com ao menos um amigo “sumindo assim, para nunca mais”, como diz a canção entoada por Gilberto Gil.
Guache de Virgínia Artigas, de 1977
Acervo IVVA/Divulgação
Virgínia e Artigas viveram sua atuação política, arte e arquitetura intensamente, em uma história repleta de passagens interessantes. Como em qualquer relação, tiveram seus altos e baixos. Um dia, com os filhos crescidos, Virgínia se preparava para deixar a casa e viver de maneira solitária — ela que teve a carreira eclipsada em parte pela fama do marido, mas também porque seus trabalhos, nos quais transparecia a militância, eram mal vistos pelo mainstream. Ao saber daquela vontade, Artigas foi veementemente contra: “Arrasto você comigo até o túmulo, nem que seja pelos cabelos!”, disse. Ela ficou. “O que os unia, em última instância, era a solidariedade”, acredita Rosa.
Virgínia e Vilanova Artigas no terraço de apartamento no Edifício Guarany, projetado por Rino Levi, em São Paulo
Acervo IVVA/Divulgação

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