Às margens do Rio São Francisco, Ilha do Ferro e Entremontes guardam saberes artesanais

O Rio São Francisco carrega a memória e a cultura do seu povo ao longo de quase 3 mil quilômetros. É dele que brotam histórias, ofícios e tradições que se entrelaçam à vida de quem mora às suas margens.
Leia mais
Em Alagoas, as águas me levaram a uma pequena vila de pescadores que virou destino para todos que amam o feito à mão – a Ilha do Ferro. Descobri, já chegando, que não era uma ilha de fato, mas um lugar onde a imaginação e a arte se multiplicam. Com pouco mais de 250 habitantes, a comunidade abriga cerca de 40 artesãos.
As casas, uma mais apaixonante que a outra, carregam identidade e fachadas coloridas que parecem dialogar entre si. É comum ver os artesãos sentados à porta, convidando quem passa para entrar e conhecer sua oficina, quase sempre instalada nos fundos. Nas janelas e calçadas, exibem suas criações como vitrines lindamente improvisadas: esculturas de madeira, peças de mobiliário e pequenas obras que esperam pelo olhar curioso dos visitantes. Essa cena dá ao vilarejo um ar acolhedor e vivo, como se o próprio São Francisco corresse também dentro das moradias.
A arquiteta e designer Juliana Pippi e o artesão Valmir Lessa
Acervo Juliana Pippi/Divulgação
Foi nesse cenário que, nos anos 70, o pioneiro Seu Fernando começou a transformar os galhos que o Velho Chico deixava nas margens em móveis. Criou o ateliê Boca do Vento, que se tornou escola e até hoje acolhe artesãos mais experientes, como Valmir Lessa: “Ele nos ensinou a trabalhar, o que foi muito importante. E ele inventava as peças dele, não copiava de ninguém não, ele inventava”, lembra.
A inventividade segue nas mãos de Dedé, que cria capoeiristas e coleções de bonecos em posições de yoga, e também nas esculturas do Mestre Aberaldo, inspiradas em figuras da região.
“Tinha um frade aqui que dava muita missão. Ele era corcunda. Aí eu fui trabalhando, vendo ele daquele jeito, e fiz um pouco parecido”, conta Mestre Aberaldo.
Mestre Aberaldo e Juliana Pippi posam ao lado de uma de suas obras
Acervo Juliana Pippi/Divulgação
Foi ali também que me apaixonei pelo trabalho e pela simpatia de Seu Nonô, que me recebeu com um sorriso generoso e me convidou a entrar em sua casa para conhecer seu ofício. Entre poemas entalhados em madeira, arrisquei um pedido que guardava comigo para esse momento: perguntei se ele não poderia gravar uma frase que tem profundo significado para mim, “Pra perto do mar”.
Coleção Yoga de esculturas do Mestre Dedé
Acervo Juliana Pippi/Divulgação
Ele respondeu: “Sim, minha filha, com todo prazer.”
No dia seguinte, voltei para buscar meu banquinho, que levei comigo no voo de volta para casa, debaixo do braço, carregado de amor e carinho. “A Ilha do Ferro é conhecida no Brasil inteiro. O vento leva e traz de volta também. Quem quiser conhecer a Ilha do Ferro, vem conhecer a beleza que ela tem”, recita Sr. Nonô.
O bordado Boa-Noite foi inspirado em uma flor local, e tornou-se uma tradição entre as mulheres ribeirinhas
Acervo Juliana Pippi/Divulgação
Se a madeira guarda histórias, as linhas também falam. Dona Creusa mantém vivo o ponto Boa-Noite, tradição que nasceu do convívio das mulheres ribeirinhas. Hoje, muitas continuam a bordar à beira do rio, transmitindo o saber de mãe para filha, algumas nas suas casas, outras na Cooperativa Art Ilha que também visitei.
Em outra viagem, mais adiante, navegando 80 quilômetros pelas margens do São Francisco, o rio me levou a Entremontes, um vilarejo de aproximadamente 600 moradores, conhecido como “terra das rendeiras”. O caminho até lá passa pelos Cânions do Xingó, paredões de até 50 metros de altura que revelam um degradê de cores tão bonito que nunca tinha visto igual.
Em Entremontes, o bordado mais tradicional é o rendedê
Acervo Juliana Pippi/Divulgação
Assim como na Ilha do Ferro, em Entremontes a arte acontece dentro das casas. São cerca de 120 artesãs dedicadas ao Redendê, que bordam sentadas em cadeiras na sala, enquanto suas peças ficam expostas nas janelas e portas, convidando o visitante a parar. Ali, a casa é ateliê, loja e também sala de acolhida. Silvana Sarmento contou como aprendeu a técnica, que chegou pela amizade entre mulheres. “Nós fazíamos ponto cruz, com o passar do tempo, chegou uma amiga da gente da cidade Propriá, Sergipe, que trouxe o redendê”, diz ela.
Leia mais
Entre madeira, fios e palavras, percebi que aqui o rio tem vida própria. Ele ensina o tempo da espera, o valor do respeito e a beleza de transformar o que a natureza entrega em arte. Cada curva do Velho Chico é também um aprendizado — e sigo, de coração aberto, recolhendo saberes que se tornam eternos.
A seguir, assista ao terceiro episódio da série “Mãos Brasileiras”:
Mãos Brasileiras: Ilha do Ferro

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima