Conheça Kamikatsu, a cidade japonesa onde quase nada vai para o lixo

Da incineração em massa às políticas de resíduo zero, entenda como este pequeno município japonês incorporou valores sustentáveis em toda a comunidade Situada na ilha montanhosa de Shikoku, composta por uma população de quase 1.400 habitantes e coberta por pomares e terraços de arroz: assim é Kamikatsu, a primeira cidade resíduo zero do Japão.
Segundo o Ministério do Meio Ambiente japonês, a taxa de reciclagem no local registrada em março deste ano foi de 76,2% – a terceira maior cifra do país. Mas nem sempre foi assim: a queima de resíduos a céu aberto já foi comum no município, quando, a partir da década de 1990 e de um esforço coletivo, a realidade insustentável sofreu grande transformação e passou a olhar com mais cuidado para a questão do lixo.
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Abaixo, explicamos como a cidade incorporou estratégias de descarte correto ao longo dos anos e se tornou o primeiro município do Japão a declarar uma meta de desperdício zero. Confira:
A origem da política sem resíduos
Quem visita Kamikatsu hoje não imagina que esta cidade-modelo para sistemas de coleta seletiva já teve a incineração como norma. Por mais de 20 anos, todo tipo de lixo industrial produzido em massa era queimado em Hibigatani, um lixão a céu aberto onde hoje fica o Centro de Resíduos Zero.
Antes disso, no período anterior à Segunda Guerra Mundial, a população vivia de forma autossuficiente: os itens necessários para a vida diária, como baldes e cestos, eram feitos de materiais naturais, a exemplo de madeira e bambu, e remendados para uso contínuo. Ao fim de sua vida útil, eram queimados ou devolvidos à terra.
Onde hoje funciona o Centro de Lixo Zero em Kamikatsu já operou um lixão a céu aberto, no qual era queimado todo o lixo industrial produzido na cidade
©Kamikatsu Zero Waste Center/Divulgação
Assim, segundo informações do governo, não havia produção de lixo em Kamikatsu. Enquanto os resíduos de cozinha eram utilizados como ração animal, composto ou despejados em rios, materiais como metais e vidros eram coletados e vendidos. Os jornais, por sua vez, eram usados como embrulhos, e lenços de papel serviam para acender fogo.
Com o crescimento econômico ocasionado pela guerra, porém, produtos industriais feitos de plástico passaram a se tornar comuns. E quando ficou difícil lidar com o lixo em casa, as pessoas começaram a queimar os resíduos em hortas domésticas.
Por volta de 1975, a incineração passou a se concentrar em Hibigatani, onde todo tipo de lixo era queimado – de restos de cozinha a pneus e até geladeiras e carros. A consequência direta desta prática, que se estendeu por mais de 20 anos, era um ar poluído e um odor terrível que subia do local todos os dias.
Hoje em dia, quase 80% do lixo de Kamikatsu é reciclado, e os moradores participam ativamente da coleta seletiva, levando os seus resíduos à estação de tratamento intermediário da cidade
INOW, Sil Van de Velde/Divulgação
Nos anos 1990, porém, as coisas começaram a mudar. Um grupo formado por autoridades municipais e moradores liderava as discussões sobre o lixo doméstico e tentavam estendê-la aos demais residentes, culminando no envolvimento coletivo que se vê hoje.
Momona Otsuka, diretora ambiental do Centro de Resíduos Zero de Kamitaksu, explica como se deram as motivações para as políticas adotadas no município. Para ela, um dos principais estímulos é o desejo de transmitir o rico ambiente natural da cidade às gerações futuras.
“Inicialmente, incineramos resíduos por meio de queima a céu aberto ou incineradores. No entanto, como um município pequeno com recursos financeiros limitados, optamos por não destinar esses recursos à incineração. Em vez disso, buscamos reduzir o desperdício ao máximo e adotar uma abordagem mais sustentável para a gestão de resíduos”, afirma.
A transformação não ocorreu da noite para o dia. Em 1991, o governo subsidiou a compra de composteiras para todas as residências, o que significava que a estação de incineração deixaria de ter mau cheiro. Já em 1994 foi formulado um plano municipal de reciclagem objetivando a redução do lixo e, três anos depois, a cidade passou a reciclar em nove categorias – número que aumentou para 25 em 1998.
Atualmente, o lixo de Kamikatsu deve ser separado entre as 43 categorias existentes na triagem para reciclagem. Produtos úteis e itens de segunda mão podem ser adquiridos na loja adjacente ao centro de coleta, estimulando o reuso
INOW, Sil Van de Velde/Divulgação
Em 2001, encerrou-se a tentativa de utilizar pequenos incineradores junto ao sistema de reciclagem, aumentando o processo de triagem para 35 categorias naquele mesmo ano. Dois anos depois, Kamikatsu se tornou a primeira cidade no Japão a declarar uma meta de desperdício zero até 2020, promovendo a triagem múltipla do lixo.
“Na época da Declaração de Resíduo Zero, o conceito ainda era novo e os moradores não o compreendiam completamente. Em resposta, a cidade criou a Academia de Resíduo Zero, uma associação geral para servir de ponte entre os moradores e o governo”, explica Momona.
A ONG assumiu a liderança no desenvolvimento de sistemas e na promoção da conscientização. Embora as estratégias sustentáveis possam ter sofrido certa resistência inicial, as ideias foram ganhando aceitação de forma gradual por meio dos esforços da academia, dos oficiais certificados para promoção de lixo zero e da equipe alocada na estação de lixo.
O resultado é que hoje os residentes de Kamikatasu não só reciclam o lixo de forma extensiva como buscam, em primeiro lugar, reduzir a quantidade de resíduos produzida.
“Há um alto nível de engajamento, pois a meta de desperdício zero é um esforço comunitário, no qual os moradores compartilham o objetivo de trabalhar juntos para alcançá-la. Muitos residentes se orgulham dos esforços pioneiros de sua comunidade”, comenta Kana Lauren Chan, mestre em Gestão de Turismo Sustentável e co-fundadora do INOW Kamikatsu, que conecta hóspedes de todo o mundo aos moradores da cidade, à filosofia japonesa satoyama e às práticas locais baseadas em desperdício zero, circularidade e vida regenerativa.
O INOW Kamikatsu conecta turistas à comunidade local, à filosofia satoyama e às práticas de desperdício zero da cidade
INOW, Sil Van de Velde/Divulgação
A ideia é que esses hóspedes possam retornar às suas comunidades inspirados pelo que viram em Kamikatsu. “Eles são incentivados a aprender sobre o sistema de resíduos e a participar de experiências que lhes permitam interagir com a população. Os programas são co-criados com hóspedes e moradores e nos ajudam a compreender melhor questões sociais reais, como envelhecimento, mudanças climáticas e despovoamento”, explica Sil Van de Velde, também mestre em Gestão de Turismo Sustentável, co-fundadora do INOW Kamikatsu e co-fundadora do INOW.
De acordo com ela, essa abordagem participativa e centrada no ser humano para viagens sustentáveis ​​é rara no Japão e promove o diálogo global-local.
“Também destacamos o valor duradouro do conhecimento local, desde o artesanato tradicional até as filosofias de vida circular. O INOW visa reconectar os visitantes com essa sabedoria, facilitando encontros significativos com aqueles que continuam a incorporar esses modos de vida”, pontua Sil.
Como funcionam as políticas de resíduo zero em Kamikatsu?
Atualmente, não há serviço de coleta de lixo em Kamikatsu: os próprios moradores levam os seus resíduos diretamente para a única estação de tratamento intermediário da cidade.
“Lá, funcionários auxiliam no processo de triagem e coleta. No entanto, para moradores sem carro ou carteira de habilitação, a cidade oferece suporte para o transporte de resíduos uma vez a cada dois meses. Atualmente, os resíduos na estação de lixo são separados em 43 categorias”, conta Momona.
Além do sistema de triagem e coleta de lixo, os habitantes de Kamikatsu adotam estratégias de desperdício zero, como vendas a granel, itens reutilizáveis, compostagem e lojas de itens de segunda mão
©Kamikatsu Zero Waste Center/Divulgação
Você pode pensar, então, que alguns residentes podem achar o processo trabalhoso e acabar se opondo a ele. Mas, para mantê-los motivados, a cidade desenvolveu um sistema baseado em pontos no qual parte dos lucros gerados pela reciclagem é devolvida aos moradores.
Além do sistema de triagem e coleta, Kamikatsu conta com estratégias que objetivam a redução do lixo produzido. Por exemplo, algumas pessoas estão envolvidas em vendas a granel, outras são adeptas das sacolas ecológicas e talheres reutilizáveis para eventos.
Há, ainda, uma loja no centro de coleta onde se pode adquirir artigos de segunda mão (roupas, utensílios de mesa e domésticos) gratuitamente, além de uma loja onde artesãos locais disponibilizam produtos feitos a partir da reciclagem.
Do governo local à comunidade, todos se envolvem com a filosofia de desperdício zero em Kamikatsu, buscando não só reciclar o que é descartado como também reduzir o lixo produzido em primeiro lugar
©Kamikatsu Zero Waste Center/Divulgação
Simultaneamente, existem esforços para compostar resíduos alimentares. Até hoje, a prefeitura de Kamikatsu oferece subsídios para a compra de processadores elétricos de resíduos alimentares, cobrindo 80% do custo total e facilitando a introdução da compostagem em casa.
Kana Lauren aponta que, dadas as diversas atividades de lixo zero voltadas à comunidade, cada morador dará uma resposta diferente caso seja perguntado sobre o significado do conceito. “Por exemplo, alguns podem dizer que participar da colheita ‘matsuri’ é desperdício zero, pois esse festival nos conecta ao arroz que cultivamos e não precisamos consumir de outros”, ela diz.
Já outros dirão que fazer chá “awa bancha” é desperdício zero, pois está conectado à cultura tradicional e, ao fazer essa bebida, também não se está gerando desperdício.
Desafios da coleta de lixo
A vida em Kamikatsu pode parecer ideal em termos de sustentabilidade, mas os processos ainda não são perfeitos. Por exemplo, apesar de a taxa de reciclagem se aproximar dos 80%, parte do lixo ainda é enviada para ser incinerada em outros locais.
Esses 20% de resíduos remanescentes incluem artigos de couro, produtos de borracha, produtos sanitários descartáveis, materiais incombustíveis, souvenirs de materiais compostos, etc.
“Tais desafios exigem mudanças nos sistemas industriais e no design de produtos por parte das empresas. No Centro de Lixo Zero de Kamikatsu, usando o ‘por quê’ como tema principal, são realizadas atividades de conscientização por meio de visitas às instalações e palestras para visitantes e hóspedes do hotel anexado ao centro”, conta Momona.
Em uma dessas visitas, o centro iniciou um diálogo entre fabricantes de solas e couro (difíceis de reciclar) e os participantes, o que resultou no desenvolvimento de sapatos desmontáveis. “Esses calçados reduzem o impacto ambiental durante a produção e são projetados para serem reparáveis ​​quando danificados, permitindo que sejam usados ​​por um longo tempo”, explica a diretora.
Outra forma de lidar com os desafios postos é que os habitantes continuam a se reunir para discutir como os sistemas podem ser aprimorados. Em 2020, a cidade declarou uma nova iniciativa de Lixo Zero, que se concentra em três pontos principais.
O primeiro deles enfatiza a redução da carga sobre os moradores – no ano passado, o número de categorias de separação de resíduos foi consolidado de 45 para 43. “O segundo ponto é que a educação ambiental é priorizada. Kamikatsu visa desenvolver líderes Lixo Zero, organizando sessões de estudo para moradores e aceitando visitas de estudo”, diz Momona.
O Centro de Lixo Zero de Kamikatsu recebe visitantes nacionais e internacionais de diversas áreas e faixas etárias, priorizando a educação ambiental
©Kamikatsu Zero Waste Center/Divulgação
O Centro Lixo Zero, instalação pública multiuso, recebe visitas de pesquisadores de muitas áreas — incluindo governo, indústria e academia — tanto nacionais quanto internacionais, e de diversas faixas etárias.
O terceiro ponto é que a iniciativa fortalece a circulação de recursos por meio da colaboração com empresas.
“O objetivo é alcançar uma reciclagem de maior qualidade com maior valor material. Por exemplo, desde o ano passado, a cidade estabeleceu um acordo abrangente com um fabricante nacional de bebidas, cooperando para reciclar garrafas PET, ao mesmo tempo em que implementa um sistema de coleta com recompra”, afirma a diretora do Centro de Lixo Zero.
Outro desafio em Kamikatsu envolve a taxa de natalidade decrescente e o envelhecimento da população, o que pode tornar o transporte do lixo à estação um fardo para idosos. “Isso também desafia a sustentabilidade de um sistema de trabalho intensivo que exige que cada pessoa seja responsável pela limpeza, separação e transporte do seu próprio lixo”, comenta Sil.
Em resposta ao problema, a prefeitura vem considerando aumentar o número de pontos de coleta na cidade.
Embora o Japão rural possa parecer pouco atrativo a alguns jovens, outros se interessam pelo caráter progressista de Kamikatsu, o seu senso de propósito e a sua comunidade acolhedora
INOW, Sil Van de Velde/Divulgação
Outro fator que contribui com o envelhecimento da população é que o Japão rural pode não ser muito atrativo a pessoas jovens, que podem acabar sendo cativadas pelas oportunidades e pela vida agitada de cidades maiores.
“No entanto, os jovens estão se mudando para Kamikatsu porque são atraídos pelos valores de sustentabilidade e, se houver possibilidade de inovação, podemos ajudar a reduzir essa carga [dos idosos]”, menciona Sil.
Ademais, o caráter progressista de Kamikatsu, o seu senso de propósito e a sua comunidade acolhedora podem ser bastante valorosos e inspiração para outras cidades ao redor do mundo.
O modelo sem resíduos pelo planeta
Há muito o que aprender com a experiência local, e outras localidades parecem estar atentas a essa possibilidade. “Kamikatsu se tornou símbolo global de sustentabilidade liderada pela comunidade. Seu modelo inspirou cidades no Japão e no exterior a repensar os sistemas de tratamento de resíduos, enfatizando a participação dos cidadãos e da comunidade”, diz Kana Lauren.
A cidade de Kamikatsu se tornou símbolo global de sustentabilidade liderada pela comunidade, e seu modelo tem inspirado outras cidades ao redor do mundo a adotar práticas de desperdício zero
INOW, Sil Van de Velde/Divulgação
O INOW, por exemplo, trabalha com outras áreas rurais para adaptar os aprendizados de Kamikatsu ao seu contexto local. “Por meio de programas imersivos, o INOW demonstra como pequenas comunidades rurais podem atrair viajantes com propósito e gerar impacto social, ambiental e econômico”, explica Kana.
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Segundo ela, a abordagem do hub não apenas apoia a economia local, mas também fortalece a identidade comunitária e o intercâmbio intergeracional. Além disso, contribui para a construção de uma rede de apoio entre Kamikatsu e outras comunidades rurais no Japão e na Ásia que enfrentam desafios semelhantes.
Segundo Momona, mais quatro municípios declararam iniciativas de Resíduo Zero no Japão depois de Kamikatsu. “Embora seus sistemas de gestão sejam diferentes, essas comunidades trabalham juntas para reduzir os resíduos. Elas também realizam uma conferência anual onde os municípios declarantes se reúnem para trocar ideias e promover a colaboração”, diz.
Mas a atenção sobre Kamikatsu extrapola o território japonês. Nos últimos anos houve visitas sucessivas de autoridades, como os governadores da Ilha de Jeju, na Coreia do Sul, e de Phuket, na Tailândia, além de representantes de diversas embaixadas. Quem sabe esta pequena cidade japonesa também não possa inspirar alguns pares no Brasil?

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