Cores para todos: como tornar projetos mais acessíveis visualmente

Quando se fala em acessibilidade na arquitetura, logo se pensa em pessoas com alguma dificuldade motora. Mas há um outro grande grupo que também necessita de reconhecimento, mas que pouco é lembrado quando o assunto é inclusão. Trata-se das pessoas com deficiência visual.
Cegos congênitos ou não, pessoas com baixa visão ou daltônicos (condição visual que dificulta ou impossibilita a percepção de certas cores) vêem o mundo de uma forma diferente e quase nunca são lembrados quando se pensa em design – seja de produto, seja de interiores – e arquitetura. Pelo menos no Brasil.
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Na Europa esse cenário vem mudando aos poucos, muito por conta do trabalho do designer português Miguel Neiva. Ele é o criador do ColorADD, um alfabeto das cores que usa símbolos gráficos para representar os diferentes tons.
“O sistema se baseia no conceito das cores primárias, atribuindo códigos específicos a elas. A partir da combinação desses códigos, cria-se símbolos para as cores secundárias. Ele também indica quando as cores são claras, escuras ou metalizadas. Além disso, inclui códigos para acromáticos, como branco, preto e cinza”, explica o designer gaúcho e publicitário Thiovane Pereira.
O ColorADD, criado em Portugal pelo designer Miguel Neiva, permite identificar cores por símbolos
ColorADD/Divulgação
Atualmente, esse sistema já é adotado em escolas e ambientes públicos, o que ajuda tanto na conscientização sobre o daltonismo quanto na autonomia das pessoas que vivem com a condição, avalia Thiovane, que é daltônico.
“Também há mais investimento em design sensorial e multicanal, que envolve tato, som e até temperatura. O Japão, por exemplo, investe bastante em sinalização tátil urbana. Aqui no Brasil já existem iniciativas, mas são pontuais. Precisamos transformar isso em política pública e prática cotidiana”, conta o arquiteto Ricardo Meira, que também tem daltonismo.
O Guia de Acessibilidade Cromática para Daltonismo foi criado por um jovem brasileiro
Thiovane Meira/Divulgação
Inspirado por essa iniciativa, Thiovane, de apenas 26 anos, lançou, em 2021, o Guia de Acessibilidade Cromática para Daltonismo, usado hoje em diversos setores de atividades no Brasil e em outros países.
“Durante a faculdade, comecei a perceber que os livros e materiais sobre design gráfico quase não abordavam a acessibilidade de forma aprofundada, especialmente quando o assunto era o uso da cor. Faltavam orientações práticas sobre como criar projetos mais acessíveis, considerando as diferentes formas de perceber as cores. Foi, então, que decidi transformar essa vivência em tema de pesquisa”, conta.
Há diferentes tipos de daltonismo, que fazem com que as pessoas enxerguem cores diferentes
Freepik/Creative Commons | Pilestone/Divulgação
O guia é voltado para quem trabalha com cor no dia a dia da indústria criativa. “Ele tem sido usado tanto no ensino, no ambiente acadêmico, quanto no mercado de trabalho. Em algumas disciplinas, o manual é aplicado como material de aula, o que ajuda os alunos a desenvolverem desde cedo uma consciência maior sobre as diferentes formas de perceber as cores”, comenta Thiovane.
Do ponto de vista técnico, segundo o arquiteto, já há ferramentas que possibilitam a inclusão cromática nos projetos, como contraste de cores adequado, pictogramas acessíveis, sinalizações táteis, tecnologias assistivas e o próprio ColorADD.
Os portadores de daltonismo enxergam as cores de formas distintas
Freepik/Creative Commons | Pilestone/Divulgação
“Tanto como profissional quanto como cliente, quem tem alguma limitação visual, seja daltonismo, seja deficiência mais severa, muitas vezes, sente-se deslocado. É como se a arquitetura e o design fossem só para quem enxerga tudo ‘normalmente’, o que é um equívoco. Falta acolhimento no processo, nas ferramentas e até no diálogo com o cliente”, destaca.
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Na outra ponta – a dos profissionais daltônicos – a ausência de catálogos e mostruários acessíveis também se revela uma barreira. “Para quem projeta, é fundamental entender que acessibilidade não é só rampa e elevador. É comunicação visual acessível também. No caso de profissionais daltônicos, incluir opções de paletas com código, nome de cor ou alto contraste já ajuda muito”, pontua.
Como alguns tipos de pessoas com daltonismo enxergam o mundo
Freepik/Creative Commons | Pilestone/Divulgação
Cores para cegos
Se os cegos – congênitos ou adquiridos – e as pessoas com baixa visão pudessem “ver” as cores por meio do tato? Essa foi a ideia que levou a pesquisadora Sandra Regina Marchi, doutora em Engenharia Mecânica pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), a criar o See Color como sua tese.
Inspirado no braille, o método usa o conceito de alto relevo para criar símbolos táteis, facilitando a identificação dos diferentes tons por pessoas com deficiência visual, incluindo daltônicos. Especialista em teoria das cores, Sandra, que é graduada em Artes Plásticas, usou a sua experiência na área para criar um sistema único e inovador.
“Foi um grande desafio, porque eu tinha que transformar algo que é da própria percepção visual em 3D. O que me ajudou muito foi a minha experiência como professora de artes. Eu sabia da dificuldade que as pessoas de visão normal têm de reconhecer as cores. Enxergamos a cor, mas a não entendemos muito como é que ela é formada”, detalha.
A pessoa cega ou com baixa visão também precisa se situar em um mundo onde as cores estão presentes
Freepik/Creative Commons
Ganhador de vários prêmios, inclusive fora do Brasil, o See Color foi lançado em 2018. “Eu levei mais de um ano e meio só pensando no código, porque eu tinha em mente que tinha que ser um símbolo pequeno e fácil de aprender, de memorizar e de sentir pelo tato”, relembra.
O sistema tem um design universal, que pode ser reproduzido em qualquer lugar do mundo, pois não usa o braille, que é um alfabeto, para simplesmente “escrever” os nomes das cores, mas parte de símbolos próprios para cada tom baseados na combinação de códigos criados pela pesquisadora.
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“A teoria da cor é igual em qualquer parte do globo. Quem aprende o See Color pode reconhecê-lo e lê-lo em qualquer lugar. Ele também é muito parecido com o ponteiro de um relógio, e a pessoa tem que memorizar somente oito códigos, oito posições de cores”, explica Sandra.
O See Color ajuda cegos e pessoas com deficiência visual a visualizarem as cores
See Color/Divulgação
Apesar de pequeno e discreto, o See Color ainda não encontrou adesão da indústria em seus materiais gráficos. “Não há interesse em colocar, porque ainda não existe realmente uma massa de pessoas pedindo por isso. Então, mesmo que seja um investimento baixo, para eles pouco interessa”, comenta Sandra.
Cores que tocam
Além do alfabeto tátil, outras iniciativas visam tornar as cores acessíveis para pessoas cegas ou com baixa visão. Uma delas, lançada em abril, partiu da marca Tintas Coral. O projeto, chamado Cores que Tocam, foi realizado em parceria técnica com a Fundação Dorina Nowill para Cegos, referência em inclusão de pessoas cegas e com baixa visão no Brasil.
Com base em estudos da neurociência, que mostram que as cores também se manifestam no cérebro de pessoas cegas através de emoções, memórias e sensações, foram criados “cromopoemas”, que são textos – posteriormente gravados em áudio (ouça aqui) – traduzindo as cores em sentimentos, histórias e textos curtos.
“Ao transformar cor em sensação, poesia e som, a Coral contribui para ampliar horizontes e reforça a importância da acessibilidade como parte essencial da inovação”, comenta Alexandre Munck, superintendente executivo da Fundação Dorina Nowill para Cegos.
Pessoas com baixa visão têm dificuldades para enxergar as cores com clareza
Freepik/ASphotofamily/Creative Commons
O projeto envolveu 70 cores do portfólio da marca, que se tornaram acessíveis a pessoas com deficiência visual por meio de uma experiência sensorial que evoca lembranças, sensações e histórias ligadas as suas trajetórias. Os tons ganharam iniciais em braille e foram dispostos em um leque de cores específico para este público.
Ele reproduz o modelo de mostruários encontrados em lojas de tintas e decoração, mas foi impresso em cartelas completamente pretas – e cada cor é entregue pelas emoções e sensações induzidas pelos textos em linguagem braille. No verso, o nome da cor aparece em seu respectivo tom e em fonte ampliada para quem tem baixa visão, mas não é alfabetizado em braille.
“Esse projeto dá um passo crucial na inclusão para garantir que mais pessoas possam sentir e escolher cores de uma forma inovadora, indo além da visão e explorando novas formas de conexão sensorial”, diz Juliana Zaponi, gerente de comunicação e cores LATAM da AkzoNobel, detentora da marca Coral.
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Luta pela inclusão
“Faltam iniciativas, leis, investimentos… falta tudo”, diz Sandra sobre as iniciativas de inclusão cromática no Brasil. “Os pesquisadores até desenvolvem ferramentas, mas elas acabam morrendo nas universidades porque nós não temos recursos, nem incentivo. Até mesmo a indústria, se for investir em inclusão, em acessibilidade, é por conta própria”, lamenta a engenheira.
Para Thiovane, esse é só o início da luta pela inclusão. Em sua opinião, ainda falta informação sobre as deficiências visuais e o daltonismo, tanto na sociedade quanto entre as próprias pessoas portadoras das condições. “Muitos que têm o daltonismo nem sabem disso, e mesmo quando sabem, preferem não falar sobre o assunto para evitar constrangimentos”, diz.
A inclusão de pessoas com deficiências visuais no Brasil ainda está longe de virar uma realidade
Pexels/Thirdman/Creative Commons
Na avaliação dele, atitudes simples da indústria podem fazer uma grande diferença para o daltônico, como escrever o nome da cor na etiqueta da peça – o que vale para roupas e também móveis, tecidos e itens de design –, garantir um bom contraste em materiais gráficos e sempre testar se as cores e sinais de um produto podem ser compreendidos por quem não enxerga da mesma forma.
O daltonismo ainda não é reconhecido como uma deficiência no Brasil, diferente do que já acontece em outros países, onde o termo “deficiência visual das cores” vem ganhando espaço, segundo o publicitário gaúcho. A condição afeta mais homens do que mulheres – 1 a cada 10 homens no Brasil é daltônico, um número bastante expressivo.
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“Mas, desde 2024, descobri que minhas pesquisas têm ajudado a impulsionar mudanças, como o Projeto de Lei nº 2.771/2024, em Minais Gerais, que propõe uma política estadual de diagnóstico e acessibilidade para pessoas com daltonismo na educação”, comemora.
O projeto foi replicado em outros estados, como Ceará, Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso, Pernambuco, Rio de Janeiro e na cidade de Itapema, em Santa Catarina.
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Para ele, as deficiências visuais costumam ser desconsideradas nos projetos por profissionais da indústria criativa, principalmente designers, por não entenderem o quanto estas condições impactam no cotidiano. “A acessibilidade cromática tem que ser pensada desde o início dos projetos, não como um extra, não deve ser deixada para depois”, argumenta.
Ricardo acredita que faltam leis mais específicas, investimento em pesquisa e, principalmente, iniciativas práticas. “Mas, acima de tudo, falta olhar para a diversidade sensorial como algo natural e importante. Ainda se pensa acessibilidade como um custo. A inclusão acontece quando isso vira valor, e não exceção”, pontua.

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