Cortejos de cor: a festa ancestral nas mãos de Liebert Pinheiro

Por meio das máscaras, o artista reencena cortejos e celebrações, ativando memórias de um Brasil por vezes invisibilizado Desde criança, Liebert Pinheiro soube que a arte seria seu refúgio. Natural da Paraíba, o artista construiu uma linguagem visual marcada pela presença de símbolos que falam de fé, festa, memória e pertencimento. Hoje, transita com fluidez entre escultura, ilustração e design gráfico, sempre conduzido por um eixo central: as máscaras. Mais do que forma ou ornamento, elas funcionam como veículo narrativo e político — uma forma de dar rosto a um Brasil invisibilizado, profundamente rico em manifestações culturais e saberes populares.
“Minha arte é um circo-parque dos sonhos. É onde mantenho viva essa criança que queria ser um super-herói e criava armaduras de papelão para se proteger do mundo”, diz. As máscaras, que surgiram como proteção na infância, ganharam contorno simbólico em sua vida adulta, especialmente quando descobriu a cerimônia Sigui, realizada pelo povo Dogon no Mali. “Essa descoberta me atravessou”, afirma. “Percebi que o que eu criava desde pequeno fazia parte de uma ancestralidade maior.”
Para Liebert, resgatar tradições não é apenas preservar o passado — é afirmá-lo no presente. Em um país onde a cultura popular frequentemente é marginalizada ou reduzida a folclore decorativo, sua obra se posiciona como um gesto de resistência. “O artista contemporâneo precisa ser ponte. Por meio da minha arte, quero provocar, reconectar, despertar pertencimento. O Brasil das feiras, dos cortejos e das histórias de quintal ainda tem muito a ensinar.”
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É com esse olhar respeitoso e politizado que ele constrói narrativas visuais de grande potência simbólica. Suas criações misturam o sagrado e o lúdico, a memória afetiva e a crítica social, sempre com uma estética brasileira, solar, inconfundível. “Continuar desenhando com sotaque, com cheiro de terra molhada, é resistência e celebração. É lembrar que o mundo precisa ouvir o som do nosso batuque.”
Esse repertório encontra agora novos caminhos de expressão através do design. Em sua colaboração mais recente — com a Tok&Stok — Liebert foi convidado a criar uma coleção exclusiva inspirada nas festas juninas do Nordeste. A linha, batizada de Pé-de-Serra, traz mais de 15 peças entre porcelanas e objetos decorativos que traduzem o universo do forró tradicional, com cores vibrantes, máscaras estilizadas e símbolos das regiões serranas do interior
O artista Liebert Pinheiro
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“Desenhar para o São João foi um desafio bonito. A festa já tem rosto, já tem cor, já tem alma. Meu papel foi acrescentar camadas sem descaracterizar. Tive muito cuidado para não cair na caricatura”, conta. A coleção, já disponível nas lojas da marca, é resultado de um processo que uniu pesquisa, escuta e afeto — e reafirma o compromisso do artista com a representação digna e autêntica da cultura brasileira.
Inspirada no autêntico forró pé-de-serra, que ganhou força nas décadas de 1930 e 1940 com Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, a coleção criada para a Tok&Stok apresenta cores vibrantes e elementos que remetem às festas realizadas nas regiões serranas do interior nordestino
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Nesta entrevista exclusiva à Casa Vogue, o artista fala sobre origens, máscaras, o papel do artista contemporâneo e a importância de manter vivo o sotaque visual brasileiro.
CV: Sua obra transita entre escultura, ilustração e design gráfico, sempre embebida de referências ao Nordeste. Quando você percebeu que era justamente nesse imaginário que residia sua potência criativa?
Quando precisei da arte para conquistar minha independência financeira, comecei uma busca por mim mesmo — pela minha alma, minha identidade. Nesse caminho, encontrei uma proteção nas máscaras. A partir delas, mergulhei em pesquisas sobre culturas de diferentes lugares do mundo. E, claro, me reencontrei com o Nordeste, que é uma fonte inesgotável de cor, memória e ancestralidade. Levo comigo as referências do lugar onde vivo, enquanto sigo explorando outras linguagens e possibilidades.
CV: Você nasceu na Paraíba e carrega uma forte ligação com o simbólico e o lúdico. Quais memórias da infância ainda ecoam na sua produção artística?
Não me lembro de um tempo em que não fizesse arte. Desde pequeno, ela foi meu refúgio, meu abrigo contra o que me feria. Eu criava armaduras de papelão e imaginava ser um super-herói mascarado, capaz de salvar o mundo. Esses personagens que eu desenhava foram os primeiros sinais do que viria a ser minha poética.
CV: As máscaras são um elemento central no seu trabalho. De onde vem esse fascínio?
Quando criança, criei um desenho chamado Uam Dogon, sem saber por quê. Anos depois, descobri que “Dogon” é o nome de um povo do Mali, na África Ocidental, que realiza o ritual Sigui, uma cerimônia marcada por danças e o uso de máscaras. Aquilo me arrebatou. Percebi que o que eu fazia não era invenção aleatória — era memória ancestral. Desde então, as máscaras se tornaram um símbolo vivo do que carrego: identidade, resistência, celebração.
CV: Qual é, na sua visão, o papel do artista contemporâneo ao revisitar tradições populares em um país tão diverso — e desigual — como o Brasil?
O artista precisa ser ponte. Vivemos em um país onde as culturas populares são frequentemente marginalizadas ou reduzidas a estereótipos. Revisitar essas tradições é um gesto político. Quando trago as máscaras para o meu trabalho, não estou apenas buscando estética — estou afirmando a força de uma identidade que resiste há séculos. É sobre dar visibilidade ao que muitas vezes é invisível.
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CV: Você enxerga sua obra como essa ponte entre o Brasil dito “profundo” e as novas gerações urbanas?
Com certeza. Busco reconectar. As novas gerações estão se afastando de suas raízes culturais, sobretudo nas grandes cidades. Por meio da arte, tento reativar memórias, provocar reflexões e despertar um senso de pertencimento. Minha arte é um convite para olhar para dentro, para trás e para os lados. Ela diz: “você faz parte disso”.
CV: Como é equilibrar autenticidade, mercado e criação artística, sobretudo sendo um artista que também atua na publicidade?
É um desafio constante. A publicidade muitas vezes cobra fórmulas e tendências. Mas minha autenticidade é inegociável. Transito entre os dois mundos com cuidado. Levo para o mercado a potência da cultura popular, mas reservo meu processo artístico como espaço de liberdade, onde posso investigar, errar, sentir. O equilíbrio está em saber que posso dialogar com o mercado sem abrir mão da minha verdade.
CV: Em um cenário global cada vez mais pasteurizado, o que significa para você desenhar a partir de uma estética genuinamente brasileira?
É reafirmar: eu sou daqui. Do Nordeste, do Brasil. Uso símbolos, cores e histórias que têm cheiro de terra molhada e som de feira. Em um mundo que tenta nos apagar, manter uma estética brasileira é resistência — e também celebração.
CV: Sua coleção Pé-de-Serra, criada em parceria com a Tok&Stok, é uma homenagem ao São João. Como foi o processo de traduzir esse universo em peças de design acessíveis ao grande público?
A proposta da colaboração com a Tok&Stok é celebrar a vida, a cultura e a arte popular por meio de ilustrações e objetos lúdicos, com preços a partir de R$7,90
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Foi um processo bonito e desafiador. O São João já tem cor, alma e rosto — o desafio era somar camadas sem descaracterizar. Pensei nos mascarados como personagens da festa, respeitando tudo o que já existe. Cada item virou uma forma de brincar, de contar histórias e de homenagear essa celebração que é tão forte no imaginário nordestino.
CV: O que foi essencial preservar nesse processo para evitar uma estética caricatural ou folclórica?
O respeito. Ao tempo, ao sentimento do povo, ao ritmo da cultura. Escutei histórias, observei com calma. Não quis exagerar ou transformar tudo em “estampa típica”. Quis traduzir, não imitar. Tratar a cultura como algo vivo, que carrega história e precisa ser cuidado com zelo.
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CV: Você acredita que parcerias como essa entre artistas e grandes marcas podem ajudar a democratizar a arte com identidade brasileira?
Acredito muito. Quando a parceria é feita com verdade, vira ponte. A arte chega a lugares onde talvez não chegasse sozinha. Não é só produto: é resistência, é narrativa. E mais gente tem acesso a essas histórias que, por tanto tempo, ficaram à margem.
CV: Quais temas do Brasil você ainda gostaria de explorar na sua obra?
Muitos. Quero contar histórias dos interiores, das pessoas que vivem entre fé, batuques e quintais. Ainda há muita criação de mascarados vindo por aí, com mundos de cor, alegria e imaginação. Cada máscara é também um gesto de resistência, uma forma de manter vivo esse menino que inventava formas de se proteger e sonhar.
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