Desenvolvido séculos a.C., o sistema de encaixes modulares utiliza apenas peças de madeira, mas garante estabilidade e resistência a terremotos Os templos chineses são um destaque da arquitetura do país. Para além do design intrincado de suas fachadas e telhados, eles merecem atenção pelo sistema construtivo, conhecido como dougong. A técnica consiste em um sistema modular feito essencialmente de madeira, composto por peças cúbicas e braços de sustentação curvos, que se encaixam em blocos, sem a necessidade de pregos ou parafusos.
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O objetivo do sistema é conectar o topo de uma coluna à parte inferior de um beiral. “O dougong provavelmente é a característica mais reconhecível de uma construção chinesa, ou a mais evidente, junto ao telhado feito de telhas cerâmicas”, afirma Nancy S. Steinhardt, professora de arte do leste asiático e curadora de arte chinesa do departamento de línguas e civilizações do leste asiático da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos.
Origem do dougong chinês
Pesquisas científicas e evidências históricas apontam que esses suportes começaram a ser usados nos últimos séculos a.C. A datação específica, no entanto, não é um consenso. “Não seria surpreendente se os suportes fossem usados no início do primeiro milênio a.C., pois construções com estrutura de madeira já eram usadas naquela época”, destaca Nancy.
A sua eficiência estrutural tornou-se essencial em regiões sujeitas a terremotos. “Enquanto na Bacia de Datong inúmeros edifícios novos desabaram, construções como o Pagode de Madeira de Yingxian e a Cidade Proibida, em Pequim, mantiveram-se intactas”, comenta Sophia Lin, arquiteta do escritório Sophia Lin Arquitetura & Curadoria. Posteriormente, a tecnologia se espalhou por toda Ásia Oriental, influenciando construções no Japão e também na Coreia.
O Templo Pagode Sakyamuni de Fogong foi construído pelo imperador Daozong de Liao (Hongji) no local onde ficava a casa da família de sua avó em 1056, durante a Dinastia Liao liderada por Quitais
Charlie Fong/Wikimedia Commons
Inicialmente, o nome para este conjunto de suportes era puzuo, e os edifícios eram categorizados conforme o número de componentes fundamentais, com pelo menos quatro e até oito. “As construções com o número máximo de componentes, normalmente, são altas. Apenas em edifícios imperiais ou de importância equivalente, como mosteiros budistas ou taoistas muito relevantes, são utilizados sete ou oito puzuo”, comenta Nancy.
O nome dougong começou a ser usado após o século 8 d.C. “Os elementos da família terminados em “dou” significam suporte, já os elementos da família “gong” são chamados de braço ou de arco de sustentação dessas estruturas”, afirma Celia Meirelles, professora do curso de arquitetura e urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Esses braços curvos, por vezes, parecem simular padrões florais.
Como funciona o dougong
Desenho do sistema ‘dougong’, feito por Li Jie, autor do primeiríssimo código de obras chinês, que serviu por muitos anos como superintendente na construção de edifícios do Estado
Domínio Público
O dougong é montado peça por peça de madeira, entrelaçadas. O processo de montagem começa com uma peça de suporte, com forma semelhante a um quadrado. “Conhecido como ludou, em chinês, a peça é conectada a um nidao gong, cujo formato é uma cantoneira com cantos arredondados e encaixe para cima e sobre ele, na direção perpendicular, é colocada a peça huagong, com encaixe para baixo”, explica Celia.
A professora comenta que as extremidades do nidao gong são aplanadas e conectadas a duas peças feitas pelas técnicas de encaixe em formato de “U”, chamadas de san dou. Nas camadas superiores, o processo é repetido, em sequência. Conforme a altura aumenta, as peças gong ganham balanços maiores.
Estabilidade estrutural e resistência
As características do doungong são, principalmente, leveza e resistência devido ao uso da madeira e do sistema modular de encaixe entre as peças
Gisling/Wikimedia Commons
O dougong, em si, não confere estabilidade e resistência a terremotos, mas sim toda a estrutura de madeira. Os chineses se referem ao dougong como “estrutura de madeira flexível”, devido às propriedades do material. “A madeira pode se expandir com o calor e se contrair, o que lhe confere estabilidade”, explica Célia.
As estruturas que utilizam a técnica do dougong tem como características a leveza e a resistência. Os encaixes entrelaçados fazem com que elas atuem no suporte de peso da construção e estabeleçam certa elasticidade.
Além disso, a técnica proporciona uma redução da tensão nas vigas horizontais, o que permite com que os edifícios se deformem sem colapsar. “Estudos experimentais demonstraram que o deslizamento por atrito entre os componentes é a principal fonte de dissipação de energia, tornando-o altamente eficiente contra tremores”, destaca Sophia.
Vantagens do uso do dougong
Para além da possibilidade de absorção de impactos sísmicos e redução da tensão das vigas, a técnica do dougong pode potencializar o valor estético das construções por sua forma complexa. “Um aspecto benéfico desse uso também é o fato da construção ser modular, o que garante maior facilidade de montagem e desmontagem da estrutura”, indica Sophia.
A técnica do ‘dougong’ dispensa o uso de pregos ou de cola, devido ao deslizamento por atrito entre os componentes
SUNDAIYANG/Wikimedia Commons
Além disso, ela pode dispensar o uso de pregos ou cola, proporcionando uma flexibilidade estrutural, e também uma substituição simplificada dos componentes. “Embora a madeira se deteriore, é fácil substituí-la. Geralmente, peças extras são cortadas ainda durante a construção do edifício e podem ser feitas por um leque mais amplo de profissionais”, comenta Nancy.
Outro aspecto é que, atualmente, softwares e aparelhos tecnológicos modernos já estão sendo empregados no planejamento de construções, que tem estruturas feitas de madeira. “Essas plataformas nos ajudam com o cálculo estrutural das construções de madeira, o que permite buscar de forma eficiente um material mais adequado, além de uma análise mais precisa dos possíveis defeitos”, salienta Célia.
Nem tudo é perfeito
Apesar dessas propriedades e vantagens, várias obras com o sistema dougong passaram pela fase de restauro, justificado pela baixa resistência das peças. Isso acontece porque elas são submetidas a uma intensa compressão feita de forma perpendicular às fibras. “A madeira tem uma resistência perpendicular à fibra, quatro vezes menor do que aquela aplicada de forma paralela. Portanto, para aplicar o sistema, este deve ser investigado em situações reais das obras e calculado por especialistas em cálculo estrutural em madeira”, destaca Célia.
O dougong na ornamentação
No início, os sistemas de marcenaria não exibiam aspectos decorativos, nem normas ou sistemas fixos em sua construção. Com o desenvolvimento do dougong ao longo das dinastias chinesas, a sua ornamentação e importância cultural também aumentaram.
Com o passar do tempo, o ‘dougong’ também passou a ser utilizado para aspectos decorativos e ornamentais das construções
Flickr/lynx81/Creative Commons
O auge desses aspectos decorativos e de ornamentação na arquitetura se deu durante as dinastias Tang e Song, duas das dinastias mais importantes da história chinesa – período nomeado, frequentemente, como Era de Ouro. Pesquisas recentes, como a desenvolvida por Pang Sainan e Jasni Dolah, da Universiti Sains Malaysia, associam este cenário à importância crescente que o budismo e suas construções vivenciavam nesse período.
Durante a dinastia Ming, a inovação foi o uso de novos componentes de madeira que ajudavam no suporte do telhado associado ao dougong. Os elementos decorativos passaram a compor os edifícios, exemplificando a integração tradicional chinesa de arte e função. O Templo Bao’en, em Sichuan, na China, é uma das construções que ilustram o estilo Ming, com quarenta e oito tipos e 2.200 conjuntos de dougong para sustentá-lo e ornamentá-lo.
O Salão da Harmonia Suprema da Cidade Proibida em Pequim, na China, originalmente foi construído em 1421 durante a dinastia Ming
Pexels/Zbigniew Bielecki/Creative Commons
O dougong passou a representar a hierarquia e a identidade cultural. “Como um dos símbolos mais reconhecíveis da arquitetura chinesa, o uso do dougong sempre faz referência não apenas à arquitetura chinesa, mas à própria China”, destaca Sophia.
Usos contemporâneos
A técnica permanece sendo utilizada em projetos arquitetônicos. O museu Yusuhara Wooden Bridge, o centro cultural e de turismo em Asakusa, o Kengo Kuma Associados e o trabalho do arquiteto chinês He Jingtang são exemplos do uso em espaços contemporâneos do dougong.
O Pavilhão da China na Expo 2010 em Xangai, também conhecido como “Coroa Oriental”, foi projetado por He Jingtang, inspirado na estrutura tradicional chinesa de ‘dougong’
Flickr/little*harry/Creative Commons
Em 2010, o Pavilhão da China, na Exposição Mundial de Xangai, foi projetado pelo arquiteto chinês He Jingtang. O projeto celebrou elementos tradicionais chineses como arquitetura, caligrafia, jardinagem e planejamento urbano. Na ocasião, Yang Xiong, vice-prefeito de Xangai, destacou que a construção, ao unir os antigos padrões de medidas e técnicas, como o dougong, com traços modernos e contemporâneos, transmitia atemporalidade.
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“O dougong, mais do que uma técnica estrutural, é uma expressão da sabedoria construtiva asiática, unindo funcionalidade, beleza e resiliência. Seu estudo inspira soluções inovadoras para a arquitetura contemporânea, especialmente em contextos de risco sísmico”, finaliza Sophia.
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O objetivo do sistema é conectar o topo de uma coluna à parte inferior de um beiral. “O dougong provavelmente é a característica mais reconhecível de uma construção chinesa, ou a mais evidente, junto ao telhado feito de telhas cerâmicas”, afirma Nancy S. Steinhardt, professora de arte do leste asiático e curadora de arte chinesa do departamento de línguas e civilizações do leste asiático da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos.
Origem do dougong chinês
Pesquisas científicas e evidências históricas apontam que esses suportes começaram a ser usados nos últimos séculos a.C. A datação específica, no entanto, não é um consenso. “Não seria surpreendente se os suportes fossem usados no início do primeiro milênio a.C., pois construções com estrutura de madeira já eram usadas naquela época”, destaca Nancy.
A sua eficiência estrutural tornou-se essencial em regiões sujeitas a terremotos. “Enquanto na Bacia de Datong inúmeros edifícios novos desabaram, construções como o Pagode de Madeira de Yingxian e a Cidade Proibida, em Pequim, mantiveram-se intactas”, comenta Sophia Lin, arquiteta do escritório Sophia Lin Arquitetura & Curadoria. Posteriormente, a tecnologia se espalhou por toda Ásia Oriental, influenciando construções no Japão e também na Coreia.
O Templo Pagode Sakyamuni de Fogong foi construído pelo imperador Daozong de Liao (Hongji) no local onde ficava a casa da família de sua avó em 1056, durante a Dinastia Liao liderada por Quitais
Charlie Fong/Wikimedia Commons
Inicialmente, o nome para este conjunto de suportes era puzuo, e os edifícios eram categorizados conforme o número de componentes fundamentais, com pelo menos quatro e até oito. “As construções com o número máximo de componentes, normalmente, são altas. Apenas em edifícios imperiais ou de importância equivalente, como mosteiros budistas ou taoistas muito relevantes, são utilizados sete ou oito puzuo”, comenta Nancy.
O nome dougong começou a ser usado após o século 8 d.C. “Os elementos da família terminados em “dou” significam suporte, já os elementos da família “gong” são chamados de braço ou de arco de sustentação dessas estruturas”, afirma Celia Meirelles, professora do curso de arquitetura e urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Esses braços curvos, por vezes, parecem simular padrões florais.
Como funciona o dougong
Desenho do sistema ‘dougong’, feito por Li Jie, autor do primeiríssimo código de obras chinês, que serviu por muitos anos como superintendente na construção de edifícios do Estado
Domínio Público
O dougong é montado peça por peça de madeira, entrelaçadas. O processo de montagem começa com uma peça de suporte, com forma semelhante a um quadrado. “Conhecido como ludou, em chinês, a peça é conectada a um nidao gong, cujo formato é uma cantoneira com cantos arredondados e encaixe para cima e sobre ele, na direção perpendicular, é colocada a peça huagong, com encaixe para baixo”, explica Celia.
A professora comenta que as extremidades do nidao gong são aplanadas e conectadas a duas peças feitas pelas técnicas de encaixe em formato de “U”, chamadas de san dou. Nas camadas superiores, o processo é repetido, em sequência. Conforme a altura aumenta, as peças gong ganham balanços maiores.
Estabilidade estrutural e resistência
As características do doungong são, principalmente, leveza e resistência devido ao uso da madeira e do sistema modular de encaixe entre as peças
Gisling/Wikimedia Commons
O dougong, em si, não confere estabilidade e resistência a terremotos, mas sim toda a estrutura de madeira. Os chineses se referem ao dougong como “estrutura de madeira flexível”, devido às propriedades do material. “A madeira pode se expandir com o calor e se contrair, o que lhe confere estabilidade”, explica Célia.
As estruturas que utilizam a técnica do dougong tem como características a leveza e a resistência. Os encaixes entrelaçados fazem com que elas atuem no suporte de peso da construção e estabeleçam certa elasticidade.
Além disso, a técnica proporciona uma redução da tensão nas vigas horizontais, o que permite com que os edifícios se deformem sem colapsar. “Estudos experimentais demonstraram que o deslizamento por atrito entre os componentes é a principal fonte de dissipação de energia, tornando-o altamente eficiente contra tremores”, destaca Sophia.
Vantagens do uso do dougong
Para além da possibilidade de absorção de impactos sísmicos e redução da tensão das vigas, a técnica do dougong pode potencializar o valor estético das construções por sua forma complexa. “Um aspecto benéfico desse uso também é o fato da construção ser modular, o que garante maior facilidade de montagem e desmontagem da estrutura”, indica Sophia.
A técnica do ‘dougong’ dispensa o uso de pregos ou de cola, devido ao deslizamento por atrito entre os componentes
SUNDAIYANG/Wikimedia Commons
Além disso, ela pode dispensar o uso de pregos ou cola, proporcionando uma flexibilidade estrutural, e também uma substituição simplificada dos componentes. “Embora a madeira se deteriore, é fácil substituí-la. Geralmente, peças extras são cortadas ainda durante a construção do edifício e podem ser feitas por um leque mais amplo de profissionais”, comenta Nancy.
Outro aspecto é que, atualmente, softwares e aparelhos tecnológicos modernos já estão sendo empregados no planejamento de construções, que tem estruturas feitas de madeira. “Essas plataformas nos ajudam com o cálculo estrutural das construções de madeira, o que permite buscar de forma eficiente um material mais adequado, além de uma análise mais precisa dos possíveis defeitos”, salienta Célia.
Nem tudo é perfeito
Apesar dessas propriedades e vantagens, várias obras com o sistema dougong passaram pela fase de restauro, justificado pela baixa resistência das peças. Isso acontece porque elas são submetidas a uma intensa compressão feita de forma perpendicular às fibras. “A madeira tem uma resistência perpendicular à fibra, quatro vezes menor do que aquela aplicada de forma paralela. Portanto, para aplicar o sistema, este deve ser investigado em situações reais das obras e calculado por especialistas em cálculo estrutural em madeira”, destaca Célia.
O dougong na ornamentação
No início, os sistemas de marcenaria não exibiam aspectos decorativos, nem normas ou sistemas fixos em sua construção. Com o desenvolvimento do dougong ao longo das dinastias chinesas, a sua ornamentação e importância cultural também aumentaram.
Com o passar do tempo, o ‘dougong’ também passou a ser utilizado para aspectos decorativos e ornamentais das construções
Flickr/lynx81/Creative Commons
O auge desses aspectos decorativos e de ornamentação na arquitetura se deu durante as dinastias Tang e Song, duas das dinastias mais importantes da história chinesa – período nomeado, frequentemente, como Era de Ouro. Pesquisas recentes, como a desenvolvida por Pang Sainan e Jasni Dolah, da Universiti Sains Malaysia, associam este cenário à importância crescente que o budismo e suas construções vivenciavam nesse período.
Durante a dinastia Ming, a inovação foi o uso de novos componentes de madeira que ajudavam no suporte do telhado associado ao dougong. Os elementos decorativos passaram a compor os edifícios, exemplificando a integração tradicional chinesa de arte e função. O Templo Bao’en, em Sichuan, na China, é uma das construções que ilustram o estilo Ming, com quarenta e oito tipos e 2.200 conjuntos de dougong para sustentá-lo e ornamentá-lo.
O Salão da Harmonia Suprema da Cidade Proibida em Pequim, na China, originalmente foi construído em 1421 durante a dinastia Ming
Pexels/Zbigniew Bielecki/Creative Commons
O dougong passou a representar a hierarquia e a identidade cultural. “Como um dos símbolos mais reconhecíveis da arquitetura chinesa, o uso do dougong sempre faz referência não apenas à arquitetura chinesa, mas à própria China”, destaca Sophia.
Usos contemporâneos
A técnica permanece sendo utilizada em projetos arquitetônicos. O museu Yusuhara Wooden Bridge, o centro cultural e de turismo em Asakusa, o Kengo Kuma Associados e o trabalho do arquiteto chinês He Jingtang são exemplos do uso em espaços contemporâneos do dougong.
O Pavilhão da China na Expo 2010 em Xangai, também conhecido como “Coroa Oriental”, foi projetado por He Jingtang, inspirado na estrutura tradicional chinesa de ‘dougong’
Flickr/little*harry/Creative Commons
Em 2010, o Pavilhão da China, na Exposição Mundial de Xangai, foi projetado pelo arquiteto chinês He Jingtang. O projeto celebrou elementos tradicionais chineses como arquitetura, caligrafia, jardinagem e planejamento urbano. Na ocasião, Yang Xiong, vice-prefeito de Xangai, destacou que a construção, ao unir os antigos padrões de medidas e técnicas, como o dougong, com traços modernos e contemporâneos, transmitia atemporalidade.
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“O dougong, mais do que uma técnica estrutural, é uma expressão da sabedoria construtiva asiática, unindo funcionalidade, beleza e resiliência. Seu estudo inspira soluções inovadoras para a arquitetura contemporânea, especialmente em contextos de risco sísmico”, finaliza Sophia.