Marcello Dantas: “Arte que não provoca desconforto é decoração”

À frente de projetos de enorme alcance, o curador Marcello Dantas abre frestas no centro da arte contemporânea por onde escorre seu poder mais visceral: incomodar Num tempo em que inteligências artificiais parecem ter colonizado até mesmo a intuição, a arte segue sendo um raro terreno de indisciplina. Partindo da recusa à lógica do espetáculo e à domesticação da experiência social, cada vez mais formatada sob a ordem mercantil, o curador Marcello Dantas vem traçando uma das trajetórias mais instigantes da arte contemporânea.
Dantas assinou algumas das mostras mais concorridas do país nos últimos anos – Ai Weiwei, Anish Kapoor, Portinari –, e esteve envolvido na criação de diversos museus, como a Japan House e o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, o Museu da Natureza, no Piauí, e os museus do Caribe e do Carnaval, na Colômbia. Está desenvolvendo, ainda, três novos museus, que girarão em torno de ciência, música e dinheiro, e um trem que cruzará o Brasil contando histórias de imigração.
Dantas posa na sua sala de jantar
Franco Amendola
Apesar da extensão do portfólio, ou talvez justamente por causa dela, o que mais impressiona é sua fidelidade ao risco, mesmo diante de fórmulas tentadoras. “Detesto rótulos como videoarte, ciberarte, arte imersiva. Só existe uma arte, que acontece na mente de quem a vê. Todo o resto – a parafernália, os suportes, os formatos – são apenas formas de atribuir valor econômico.” Fora das amarras classificatórias, nesse estado de despossessão – ou de presença radical –, a arte promovida por Dantas pode ser tudo, menos meramente ilustrativa. A seguir, ele reflete sobre as muitas vocações do seu trabalho enquanto revisita sua trajetória recente com exclusividade para a Casa Vogue.
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Depois de tanta arte, o que ainda o instiga?
Obras que expandem a definição de arte. Pessoas que trabalham na fronteira entre biologia e química, que se engajam numa busca profunda por rituais, que entendem que o impacto da arte está no seu próprio processo de produção, e que sistemas existem para serem desafiados, e linguagens, para serem inventadas.
Como transformar o pulsar invisível da coletividade em algo curável, experienciável, sensorial?
O invisível não é imperceptível. Nem toda arte é visual. Ela pode entrar em nosso corpo por muitas portas: pele, ouvidos, narinas – e também revelações. A verdadeira obra se revela no momento em que alguém a narra a outra pessoa. Este é o ponto-chave: a obra, em essência, é a história que dela se conta. O pulsar invisível da arte é sua matéria mais preciosa – o zeitgeist, esse espírito do tempo ao qual todo artista pertence.
Dantas ao lado de obra do escultor brasileiro Angelo Venosa
Franco Amendola
Em um regime de previsibilidade ditado por algoritmos deterministas e IAs oniscientes, qual o papel da arte? Devemos tentar mantê-la radicalmente humana?
A arte não é uma exclusividade humana, e se não reconhecermos o valor estético e o saber artesanal de outras espécies, estaremos negando a própria origem do impulso criativo. Do canto de um pássaro à coreografia de um peixe, dos desenhos das teias de aranha às cores de uma asa de borboleta, há arte em toda parte se soubermos ver. Também acredito que a inteligência artificial pode ser uma criadora legítima. O que precisamos fazer é nos esforçar para que nossa arte continue sendo relevante.
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Devemos então pensar uma arte que não tenha nós, humanos, no centro?
Grande parte dos nossos problemas vem do antropocentrismo. O desequilíbrio ambiental começa aí. Precisamos mudar essa lógica. Uma provocação que faço aos artistas é questionar se conseguem pensar em algo relevante para ao menos uma espécie além da sua. Que espécies sofreriam com a extinção das abelhas? Todas. E com a extinção dos humanos? Talvez só os golden retrievers.
A arte não é exclusividade humana. Se não reconhecermos o valor estético de outras espécies, negamos a própria origem do impulso criativo
Muitos artistas usam psicodélicos para acessar camadas arcaicas de pensamento. Acredita nessa ancestralidade da forma, numa memória que emerge quando o filtro racional é suspenso?
Os psicodélicos estão na gênese dos momentos mais importantes da criatividade humana. Estavam no kykeon da Grécia antiga, na soma da Índia ancestral, nos cogumelos teonanácatl da cultura maia e no LSD dos anos 1960. Hoje vivemos seu renascimento, e espero que sejamos capazes de superar nossa obsolescência diante da inteligência artificial. Alterar estados de consciência nos permite enxergar o que os olhos comuns não veem. E ver com outros olhos é o papel do artista.
Marcello Dantas senta-se na poltrona Flor, de Mauricio Klabin, na sala de estar de sua casa em São Paulo, vestindo Issey Miyake: “Meu guarda-roupa é todo dele” – ao fundo, fotografia do mexicano Héctor Zamora
Franco Amendola
Por que o Museu da Língua Portuguesa, que parte de uma matéria-prima imaterial e instável, é tão bem-sucedido em provocar sensações de afeto e pertencimento?
Talvez justamente pela língua ser nosso lugar do afeto mais ancestral. Ela é um acontecimento vivo, só se manifesta como processo, nunca como objeto. Queríamos criar uma dinâmica em que todos fossem agentes de uma obra comum – coletiva, totalizante, em permanente mutação.
Para Raiz, você sugeriu a Ai Weiwei um enraizamento local. Como foi o cruzamento entre o discurso artístico dele e a materialidade do Brasil?
A beleza emergiu da capacidade das mãos comunicarem o que os lábios não podiam. Ele as usou para construir um diálogo silencioso com os artesãos brasileiros. Uma magia não verbal aconteceu ali. Ai Weiwei é um gigante do nosso tempo. Poucos sintetizam com tanta precisão nossa condição contemporânea. E Raiz é até hoje a exposição solo de um artista contemporâneo mais visitada no mundo.
De volta à sala de estar, Dantas posa diante de obra da americana Laurie Anderson
Franco Amendola
Portinari para Todos propôs um acesso amplo a um artista denso, mas sem torná-lo raso. Como atingir esse equilíbrio?
Portinari é um emblema do Brasil moderno – e carrega as contradições de sê-lo. Sempre quis ser do povo. Adorava as linguagens de grande alcance, as obras de grandes dimensões. Realizou gestos políticos importantes, mas também retratou as elites. Em sua produção absurdamente prolífica, explorou estilos, linguagens e temas com enorme liberdade. Criamos um mergulho na diversidade de um artista que olhou para o povo, a natureza, a fé, a guerra e a paz. Quisemos revelar essa vastidão – não um recorte, mas uma colagem.
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Você criou mostras sobre Pelé, Roberto Carlos, Hebe… Como retrabalhar ícones tão saturados?
Acho ótimo que me convidem para esses projetos. É uma chance de alcançar quem nunca foi ao museu. Introduzo linguagens e estéticas que normalmente não circulam nesses contextos e permito que a poesia e a liberdade dos personagens inspirem outras pessoas. Esse ponto de cruzamento é singular. A sociedade brasileira vive um apartheid cultural, e apenas figuras como Pelé, Roberto Carlos e Hebe conseguem transitar entre os dois mundos.
Você está por trás da Japan House, do Museu do Caribe, da Bienal de Vancouver… Como trabalhar culturas que não a sua sem colonizar o discurso?
O que faço é fruto de uma escuta atenta e da capacidade de transformar em experiência o que encontro por onde passo. Levo algo que posso oferecer e busco algo que posso receber. Esta é a alternativa à lógica da imposição colonial: a troca justa, o aprendizado em comum. E talvez por vir de um país relativamente neutro no cenário global, meu discurso não carrega preconceitos arraigados. A diversidade é o maior patrimônio da humanidade.
Dantas no laboratório com seu destilador, onde produz óleo de sassafrás, raiz com princípio ativo que desperta a afetividade
Franco Amendola
O Museu da Natureza explora fósseis, ecossistemas, raiz, terra, território. Qual foi o maior aprendizado nesse projeto?
Conviver com Niède Guidon, uma das grandes mulheres da história deste país. Aprendi a compreender a narrativa das pinturas rupestres, os cuidados nos enterramentos, a delicadíssima flauta de osso ali deixada. Tudo isso revela um povo sensível, que temia e amava, que se conectava à sua essência e deixou marcas de uma existência épica em um tempo do qual temos pouca noção. No fim, o que sobra de um povo são sua arte e seus ritos.
Arte que não provoca desconforto é decoração. Arte existe para gerar dúvida, inquietação. Decoração é solução, arte é problema
Ascension, de Anish Kapoor, foi uma instalação posicionada embaixo do Viaduto do Chá. É uma obra sem matéria, mas com grande peso, convidando a olhar para cima em um entorno tido como decadente. O que se quis tensionar ali?
Ascension é icônica. A força da ausência de matéria se manifesta como vento, fumaça e movimento num sentido vertical, espiritual, carregado de poder transformador. Empregamos meninos que viviam nas ruas, que cheiravam cola, para trabalhar no projeto. Criamos um momento catártico, em que a energia da vida parecia se descolar dos corpos e se transformar em dança. Anish foi brilhante nesse projeto que marcou profundamente quem o presenciou.
Marcello Dantas explorando a biblioteca em sua residência
Franco Amendola
ComCiência, com as criaturas entre o humano, o animal e o biotecnológico de Patricia Piccinini, foi a mostra de arte contemporânea mais vista no mundo em 2016. Hoje, o fenômeno reborn cresce como simulacro afetivo hiper-realista. O que esses movimentos dizem sobre nosso desejo de criar vínculos com o quase-humano? Estamos tentando forjar a empatia que já não sentimos naturalmente?
Estamos todos um pouco frustrados com os rumos que nossa espécie tem tomado. Avançamos muito tecnologicamente, mas não sentimos verdadeira satisfação com nada disso. Trilhamos um longo caminho, mas não chegamos a lugar algum. Não há sentimento genuíno de que o futuro será melhor. Piccinini anteviu esse estado híbrido em que o humano e o não humano tentam convergir, e talvez essa seja nossa última utopia. Foi impressionante ver uma artista australiana, inédita no Brasil, reunir mais de 1 milhão de visitantes. Essas imagens despertaram algo. Algum sentimento difícil de nomear veio à tona.
A arte serve mais para buscar respostas ou estimular dúvidas?
Arte que não provoca desconforto é decoração. Nada contra decoração, mas arte não existe para confortar. Arte existe para instigar, gerar dúvida, incerteza, inquietação. Decoração é solução, arte é problema.
Em um cenário ideal, em que estado devemos sair de uma fruição artística?
Em dúvida, mas pleno de sensações. Com a felicidade de se sentir empoderado, ainda que profundamente curioso. A única coisa que pode salvar a humanidade é a curiosidade.
*Matéria originalmente publicada no Yearbook 2025 da Casa Vogue (CV473), disponível em versão impressa, na nossa loja virtual e para assinantes no app Globo Mais
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