O livro vive: como bibliotecas, livrarias e cantos de leitura resistem ao avanço da era digital

No início dos anos 2000, o temor de que a era digital pudesse acabar com o livro de papel tinha algum fundamento. Ninguém sabia ao certo quais seriam as consequências de empreitadas como o Google Livros (antes chamado Google Book Search), criado em 2004, que, desde então, escaneia e torna disponíveis para pesquisa online milhões de obras por ano, de forma parcial ou integral, segundo acordos locais com editoras e autores. Hoje, o vasto acervo virtual do serviço de buscas é somente um dos componentes do cenário em que é possível delegar a produção de um trabalho acadêmico para a inteligência artificial, com citações bibliográficas no padrão correto e tudo mais. Nem assim o livro impresso mostra sinais de perecer. “O livro não desaparecerá porque é ancestralidade viva. Ele materializa a tradição oral, presente em todas as etnias e culturas”, afirma o arquiteto Rodrigo Mindlin Loeb, autor, com Eduardo de Almeida, do projeto da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, no campus da Universidade de São Paulo (USP).
Os livros envolvem o vão central na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, na USP, de autoria de Rodrigo Mindlin Loeb e Eduardo de Almeida. N
Nelson Kon
Recentemente, de modo semelhante ao disco de vinil, o livro físico começou a ser cultuado como um símbolo da reação contra o excesso de digitalização. Em julho, a newsletter da agência de tendências francesa NellyRodi apontou que “livros são uma maneira de se reconectar ao tangível” e classificou a estante de casa como uma espécie de “manifesto” e “altar silencioso”. Numa abordagem mais carnal, a colunista do New York Times Maureen Dowd escreveu em agosto que “livros são sexy!”, num artigo em que convocava o público masculino a ler mais ficção. O livro impresso segue vivo. O que mudou com certeza no séc. 21 foram os modos de ler e o tempo disponível para isso. Quanto aos espaços dedicados à leitura, a exemplo dos boomers e da geração X, tiveram que se adaptar às características do mundo digital.
Localizada na escola secundária Phillips Exeter Academy, em New Hampshire, nos Estados Unidos, a Biblioteca de Exeter, projeto do arquiteto Louis Kahn, foi aberta em 1971 com a proposta de, mais do que guardar livros, abrigar leitores – o local pode ser visitado mediante agendamento prévio
Naquib Hossain
Para acompanhar os novos tempos, as bibliotecas ampliaram o cardápio de atividades culturais com o objetivo de atrair usuários. “A Biblioteca Mário de Andrade, tema do meu trabalho de conclusão de curso, virou um ambiente mais dinâmico do que era no passado, pois agora oferece uma programação intensa de palestras, debates, exposições de arte, oficinas, cursos e apresentações de música e teatro”, diz o arquiteto Guto Requena (reconhecido no Casa Vogue 50). No trabalho de graduação, em 2003, Guto propôs que a instituição paulistana se transformasse num centro multimídia, inspirado na Midiateca de Sendai, no Japão, projetada por Toyo Ito e inaugurada em 2001. Essa transição aconteceu naturalmente nas grandes bibliotecas pelo mundo: os acervos incorporaram meios de armazenamento digitais e obras selecionadas foram convertidas para consulta online. Como escreveu o historiador Robert Darnton em A Questão dos Livros: Passado, Presente e Futuro (Companhia das Letras, 2010, 196 págs.), bibliotecas nunca foram apenas depósitos de livros. “Sua posição central no mundo do saber as torna ideais para mediar os modos impresso e digital de comunicação.” Outra discussão em alta na época do TCC de Guto era transformar as bibliotecas em espaços de democratização do acesso à internet rápida – ideia que os avanços tecnológicos logo tornaram datada. “De lá para cá, proporcionar a socialização se tornou mais importante”, comenta o arquiteto.

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A Midiateca de Sendai, no Japão, concebida pelo arquiteto Toyo Ito e aberta em 2001, foi uma das primeiras no mundo a endereçar a questão do acervo híbrido, composto por livros físicos e meios digitais
Iwan Baan
Embora movimentadas, as bibliotecas ainda oferecem recantos silenciosos para os visitantes em busca de concentração e estudo. “Até hoje, a grande referência são os gabinetes de madeira projetados pelo arquiteto Louis Kahn para a Biblioteca de Exeter, que criam um mundo dentro do outro”, lembra Rodrigo Loeb. Quando possível, esse tipo de espaço é concebido com o objetivo de propiciar conexão com a paisagem. “Na Biblioteca Brasiliana, desenhamos a sala de leitura voltada para a praça principal. A ideia era que, após mergulhar os olhos no livro, o usuário pudesse ter horizonte, perspectiva”, detalha. A evolução das bibliotecas está sintetizada em dois projetos do escritório de arquitetura norueguês Snøhetta, com 21 anos de diferença entre eles: a Bibliotheca Alexandrina, aberta em 2002, que revive a antiga Biblioteca de Alexandria, no Egito, e a Biblioteca de Pequim, de 2023. Na primeira, o edifício destaca-se por seu caráter de monumento à escrita, com interiores austeros. A segunda foi planejada para ser um espaço comunitário vibrante e informal, com diversas opções culturais, que possibilita tempo longe das telas e integração com a natureza.
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Cultivar o espírito de comunidade por meio de atividades ao vivo, como bate-papos com autores e reuniões de clubes de leitura, também compõe a fórmula de sobrevivência das livrarias físicas. Em um mercado dominado pelo e-commerce e após o fechamento de grandes redes nacionais e internacionais, assistimos ao renascimento das lojas de rua. “São espaços de resistência, que interagem de um jeito interessante com a cidade”, acredita o arquiteto Marcio Kogan, do Studio MK27 (elencado no Casa Vogue 50), frequentador, entre outras, da Megafauna e da Gato sem Rabo, em São Paulo. Segundo ele, a compra online nunca irá substituir o prazer de percorrer as gôndolas, apreciar as capas, folhear as páginas e descobrir novidades. “Fico atento aos lançamentos editoriais e, mesmo assim, não consigo acompanhar tudo o que acontece. Só indo à livraria para saber.”
Estante de apartamento paulistano assinado pelos arquitetos Marcio Kogan, Diana Radomysler e equipe, do Studio MK27
Jonas Bjerre-Poulse
O ambiente precisa deixar os consumidores à vontade para tirar um volume da prateleira e se esparramar numa poltrona, aposta a arquiteta Bel Lobo (listada no Casa Vogue 50), do escritório carioca Be.Bo, responsável pelo projeto das unidades da Livraria da Travessa. “Sempre planejamos lugares para sentar e mantemos a maioria dos livros expostos em bancadas, numa organização não muito certinha para ninguém se sentir intimidado”, descreve. Uma parte dos volumes vai para estantes escuras, que ressaltam o colorido das encadernações. Todos os endereços da rede contam com um café ou restaurante – a associação entre livros e comida reforça a atmosfera informal, garante a clientela assídua e se tornou padrão nesse tipo de estabelecimento. “Mas nada disso daria resultado se não houvesse uma boa curadoria de títulos”, ressalta Bel. Entre as lojas de rua, desponta um segmento ainda mais aguerrido: o das livrarias de nicho.
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A já citada Gato sem Rabo (leia à pág. 38) dedica-se às obras escritas por mulheres; a Aigo, igualmente paulistana, aos autores imigrantes; e a Kitabu, em Vila Isabel, no Rio de Janeiro, às criações da população negra. Na Livraria Eiffel, o tema é a arquitetura, uma escolha praticamente moldada pela localização: a loja fica no térreo do edifício residencial homônimo, projetado por Oscar Niemeyer e Carlos Lemos em 1952, vizinho da sede do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e de faculdades e escritórios da área, no centro de São Paulo. O dono, Leo Wojdyslawski, advogado com experiência em propriedade intelectual, morou no Eiffel, é filho de arquiteto e apaixonado pelo assunto. “Amigos me avisaram que eu não ganharia muito dinheiro como livreiro, o que é verdade, mas estou adorando”, conta. “Convivo com obras maravilhosas e gente muito bacana.”
A fachada de pedra da Bibliotheca Alexandrina, no Egito, projeto do escritório norueguês Snøhetta, exibe inscrições que representam os diversos sistemas de escrita encontrados no mundo;
Historic Collection/Alamy/Fotoarena
No momento em que o livro corporifica o movimento contrário à digitalização, ele traz junto a revalorização das estantes. “Quase todos os nossos projetos de casas e apartamentos hoje têm uma biblioteca”, assegura Marcio Kogan. Segundo o arquiteto, há casos de ambientes isolados, porém a opção preferida é fazer um living integrado e nele instalar um grande móvel para expor livros, objetos e obras de arte. “A peça funciona como repositório das memórias dos moradores”, explica. Na criação do desenho, o profissional e sua equipe buscam inspirações clássicas, como o Edifício Stephen A. Schwarzman, da Biblioteca Pública de Nova York. Guto Requena também percebe uma presença maior do livro nas áreas de convívio. “Quem lê quer mostrar. É um sinal de distinção”, fala. Em seus projetos, ele gosta de dispor uma poltrona perto da janela, de modo que a luz natural incida nas páginas. Ao lado, posiciona uma luminária de piso para a leitura noturna. “Nas casas com crianças, esse canto costuma ficar no home office ou no quarto, para ser possível fechar a porta e ter tranquilidade.” Conforto, luz e silêncio, portanto, continuam a constituir a base de um bom ambiente de leitura. A maior dificuldade de quem gosta de ler atualmente, no entanto, não está em configurar o espaço ideal, e sim em encontrar tempo. “A exigência de produtividade da vida contemporânea nos rouba o ócio. O celular nos deixa dispersos. É preciso muito esforço para ler”, pondera Rodrigo Loeb.
Outro projeto do Snøhetta, a Biblioteca de Pequim, de 2023, traz colunas inspiradas no ginkgo, árvore nativa da China, arquibancadas sinuosas que estimulam a leitura e a interação dos visitantes e grandes painéis de vidro para propiciar conexão com a paisagem
Francois Nadeau/Zuma Press
Aí está o nó da condição do livro na era digital: ele disputa a atenção do leitor com apelos mais poderosos. Por fim, ainda não é possível descartar o caminho da desmaterialização. “Devido à emergência climática, é provável que no futuro os seres humanos tenham que migrar de regiões atingidas por catástrofes e virar nômades”, prevê Guto Requena. “Teremos que carregar menos coisas. Levar músicas, filmes, fotos e livros em aplicativos digitais será um modo de reconstruir a memória afetiva num novo lugar.” Quando a sobrevivência da espécie está em questão, talvez não faça sentido ter apego a objetos materiais. Mas sem conhecimento, como sairemos dessa? “Enquanto existirem árvores e livros, precisamos nos agarrar a eles e não deixar que morram”, sugere Bel Lobo. Ela tem razão: um não vive sem o outro.
*Matéria originalmente publicada na edição de setembro/2025 da Casa Vogue (CV 476), disponível em versão impressa, na nossa loja virtual e para assinantes no app Globo Mais.
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