No design, algumas criações vão além da função: elas contam histórias, refletem uma época e projetam o futuro. As produções do icônico estilista franco-italiano Pierre Cardin (1922–2020) são exemplo disso.
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A trajetória de Pierre Cardin
Nascido na região do Vêneto, na Itália, Pierre e sua família migraram para a França em 1924 em decorrência da Primeira Guerra Mundial — país onde ele posteriormente adquiriu nacionalidade. Aos 14 anos, em 1936, iniciou sua aprendizagem na moda com um alfaiate na cidade francesa de Saint-Étienne.
Após uma passagem no ateliê de Manby, na cidade de Vichy, em 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial, mudou-se para Paris. Lá, estudou arquitetura e trabalhou com Madame Paquin, uma das primeiras estilistas da história. Atuou com Elsa Schiaparelli até se tornar chefe do ateliê dos alfaiates de Christian Dior, em 1947.
Pierre Cardin trazia em seu trabalho conexões entre diferentes campos do design, desde o universo da moda ao mobiliário. Retrato do estilista em 1978
Domínio Público/Wikimedia Commons
Pierre Cardin fundou sua própria marca em 1950 e começou com alta costura três anos depois. Ficou conhecido por seu estilo de vanguarda e por seus trabalhos inspirados na chamada “era espacial”.
“Além da aplicação de estilos e tendências, Cardin fazia protótipos de futuros possíveis por meio de roupas, móveis e objetos que encarnavam especulações sobre o corpo, o espaço e a tecnologia”, afirma Gustavo Curcio, pesquisador da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design da Universidade de São Paulo (FAU-USP), e dos laboratórios LabImagem e LabIndus.
Do vestir ao habitar: a visão interdisciplinar de Pierre Cardin
As décadas de 1960 e 1970 foram tempos de euforia astronômica. O lançamento do satélite Sputnik — do programa espacial soviético —, a chegada do homem à Lua e os avanços aeroespaciais geraram um imaginário coletivo que impactou as diferentes esferas do design: da arquitetura à moda, da arte ao mobiliário.
“Pierre Cardin dissolveu as delimitações entre as artes aplicadas, sendo um dos primeiros estilistas a integrar moda, arquitetura e mobiliário em uma mesma operação projetual”, coloca Marcelo Teixeira, arquiteto e urbanista, e professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
As referências futuristas também estavam presentes na moda de Pierre Cardin. Na imagem, cena da exposição Pierre Cardin: Future Fashion, que aconteceu no Brooklyn Museum (New York, EUA) de 20 de julho de 2019 a 5 de janeiro de 2020. O nome do vestido é Parabolic, de 1991
Flickr/london road/Creative Commons
A inovação de Pierre residia na capacidade de transpor a moda para outras áreas, propondo novas formas de mediação entre corpo e espaço. “Assim como suas roupas unissex e tridimensionais redefinem o corpo em movimento, seus móveis convidam à experimentação de novas posturas, ritmos e usos no espaço doméstico”, explica Gustavo. Essa combinação entre corpo, objeto e ambiente é um dos fundamentos do design espacial.
A sua própria residência, o Palais Bulles — em português, Palácio das Bolhas —, projetada pelo arquiteto húngaro Antti Lovag na década de 1970, refletia a visão de um habitar cósmico, sensorial e plástico. “Localizada no sul da França, a casa é composta por um conjunto de volumes arredondados e interligados, evocando bolhas que se entrelaçam em um espaço fluido e orgânico”, acrescenta o professor.
O Palais Bulles foi construído entre 1979 e 1984 com projeto do arquiteto Antti Lovag. A residência de veraneio recebia Pierre Cardin ocasionalmente a partir de 1991, quando ele passou a usá-la para exposições e desfiles
Flickr/Niklas Morberg/Creative Commons
Foi nesse imóvel que Pierre Cardin também exibiu parte de sua coleção de móveis dos anos 1960 e 1970, além de criar peças icônicas como o Robes bulles (vestido bolha), lançado em 1958 — símbolo de sua fase futurista e inspirada na era espacial, a vestimenta integrou suas coleções do final dos anos 1950 até a década de 1960.
O design de interiores de Pierre Cardin
A incursão de Pierre Cardin em outras áreas surgiu a partir de um convite e foi um movimento natural para o estilista. “Lembro que Pierre me disse que, um dia, foi convidado para desenhar móveis e outros produtos. Ele respondeu que criar fora da moda não seria absurdo, desde que seu estilo fosse reconhecível”, lembra Rodrigo Basilicati Cardin, sobrinho-neto de Pierre e atual presidente da Maison Cardin.
Cardin produziu diversas peças, sempre com características comuns, mas mantendo singularidade. Uma de suas primeiras criações, feita em sua oficina de móveis, foi uma mesa de escritório — no formato de paralelepípedo, ela tinha acabamento brilhante que imitava mármore em tons de marrom e cinza. Contava com uma faixa larga vermelha combinada a detalhes cromados mais finos, apoiada em uma esfera vermelha e uma pirâmide de metal cromado.
O aparador Head of the Moon é um dos destaques do mobiliário criado por Pierre Cardin, que, pelas suas formas, evidencia a influência futurista na vida do estilista
Pinterest/Nicolas Salloum/Reprodução
Geometria pura e equilíbrio instável resumem os trabalhos seguintes de Pierre Cardin, segundo Rodrigo. “Centenas de criações diferentes entre si, expressando sempre novos conceitos e intenções”, destaca ele.
Muitas peças são descritas como esculturas utilitárias, unindo estética futurista e funcionalidade. Cardin traduziu suas ideias da moda para materiais como madeira, metal e vidro. “A inspiração na natureza e nos estados de espírito humanos está sempre presente, mas traduzida em formas abstratas”, completa o sobrinho-neto.
Retrato de Pierre Cardin em fevereiro de 1976 no Espaço Pierre Cardin em Paris, na França. O local era um centro expositivo e cultural que foi fundado pelo estilista e designer
PICOT/Getty Images
A mesa de café dobrável Éventail (1984) reflete a habilidade de Cardin em unir forma e função. O aparador Head of the Moon (1978), em laca vermelha e preta, evidencia essa mesma característica, combinando cores marcantes e contrastantes.
“Há sempre uma certa doçura na combinação de formas, linhas e cores: qualquer agressividade é suavizada por um senso de compreensão, mergulhando até as formas mais ousadas na suavidade”, fala Rodrigo.
A arquitetura de Pierre Cardin
Além do mobiliário, Cardin explorou a arquitetura futurista. O mais emblemático é o Palais Lumière, projetado para a região de Marghera, perto de Veneza, na Itália. Com 250 metros de altura e 60 andares, seria uma “escultura habitável”, reunindo residências, escritórios, comércio e áreas de lazer. O palácio, desenvolvido com a ajuda de seu sobrinho-neto, foi planejado para ser ecológico, ergonomicamente sólido e autônomo.
Seis turbinas eólicas sob cada disco gerariam dois terços da energia necessária para o edifício. “Seus experimentos com habitats modulares mostram a crença na tecnologia como mediadora de novos modos e formas de viver”, afirma Marcelo, professor do Mackenzie.
O estilista e designer faleceu aos 98 anos, em 2020. Retrato oficial de Pierre Cardin, tirado por seu próprio fotógrafo, Claude Iverné
Claude Iverné/Elnour/Wikimedia Commons
A construção, no entanto, não foi realizada. Logo após o anúncio, surgiram questionamentos sobre sua viabilidade. A altura prevista ultrapassaria em 150 metros a torre da igreja de São Marcos, principal construção da histórica ilha italiana, o que poderia comprometer seu reconhecimento como Patrimônio da Humanidade pela Unesco.
O legado de Pierre Cardin
Marcelo ressalta que “vestir a casa, assim como se veste o corpo humano”, sempre foi a filosofia de Cardin, que faleceu aos 98 anos, em 2020. “Suas produções continuam a mostrar como a inventividade formal pode ressignificar práticas cotidianas”, comenta.
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“Embora Pierre Cardin não atuasse no contexto acadêmico ou científico atual, seu trabalho pode ser visto como um exemplo de pesquisa projetual por meio da prática criativa”, aponta Gustavo, da FAU-USP. Isso porque o franco-italiano incorporava em seus projetos não apenas estética, mas também suas perspectivas e formas de compreender o mundo.
A liberdade e a colaboração definem o legado do estilista, segundo seu sobrinho-neto. “No tempo que trabalhei com Pierre, entre 2000 e 2020, tive espaço para desenvolver seus conceitos, como a combinação de formas. Ele permitia transformá-las em curvas refinadas, mas livres, respeitando minha sensibilidade, que via como semelhante à sua”, relembra Rodrigo, que atualmente comanda a marca Maison Cardin.
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A trajetória de Pierre Cardin
Nascido na região do Vêneto, na Itália, Pierre e sua família migraram para a França em 1924 em decorrência da Primeira Guerra Mundial — país onde ele posteriormente adquiriu nacionalidade. Aos 14 anos, em 1936, iniciou sua aprendizagem na moda com um alfaiate na cidade francesa de Saint-Étienne.
Após uma passagem no ateliê de Manby, na cidade de Vichy, em 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial, mudou-se para Paris. Lá, estudou arquitetura e trabalhou com Madame Paquin, uma das primeiras estilistas da história. Atuou com Elsa Schiaparelli até se tornar chefe do ateliê dos alfaiates de Christian Dior, em 1947.
Pierre Cardin trazia em seu trabalho conexões entre diferentes campos do design, desde o universo da moda ao mobiliário. Retrato do estilista em 1978
Domínio Público/Wikimedia Commons
Pierre Cardin fundou sua própria marca em 1950 e começou com alta costura três anos depois. Ficou conhecido por seu estilo de vanguarda e por seus trabalhos inspirados na chamada “era espacial”.
“Além da aplicação de estilos e tendências, Cardin fazia protótipos de futuros possíveis por meio de roupas, móveis e objetos que encarnavam especulações sobre o corpo, o espaço e a tecnologia”, afirma Gustavo Curcio, pesquisador da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design da Universidade de São Paulo (FAU-USP), e dos laboratórios LabImagem e LabIndus.
Do vestir ao habitar: a visão interdisciplinar de Pierre Cardin
As décadas de 1960 e 1970 foram tempos de euforia astronômica. O lançamento do satélite Sputnik — do programa espacial soviético —, a chegada do homem à Lua e os avanços aeroespaciais geraram um imaginário coletivo que impactou as diferentes esferas do design: da arquitetura à moda, da arte ao mobiliário.
“Pierre Cardin dissolveu as delimitações entre as artes aplicadas, sendo um dos primeiros estilistas a integrar moda, arquitetura e mobiliário em uma mesma operação projetual”, coloca Marcelo Teixeira, arquiteto e urbanista, e professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
As referências futuristas também estavam presentes na moda de Pierre Cardin. Na imagem, cena da exposição Pierre Cardin: Future Fashion, que aconteceu no Brooklyn Museum (New York, EUA) de 20 de julho de 2019 a 5 de janeiro de 2020. O nome do vestido é Parabolic, de 1991
Flickr/london road/Creative Commons
A inovação de Pierre residia na capacidade de transpor a moda para outras áreas, propondo novas formas de mediação entre corpo e espaço. “Assim como suas roupas unissex e tridimensionais redefinem o corpo em movimento, seus móveis convidam à experimentação de novas posturas, ritmos e usos no espaço doméstico”, explica Gustavo. Essa combinação entre corpo, objeto e ambiente é um dos fundamentos do design espacial.
A sua própria residência, o Palais Bulles — em português, Palácio das Bolhas —, projetada pelo arquiteto húngaro Antti Lovag na década de 1970, refletia a visão de um habitar cósmico, sensorial e plástico. “Localizada no sul da França, a casa é composta por um conjunto de volumes arredondados e interligados, evocando bolhas que se entrelaçam em um espaço fluido e orgânico”, acrescenta o professor.
O Palais Bulles foi construído entre 1979 e 1984 com projeto do arquiteto Antti Lovag. A residência de veraneio recebia Pierre Cardin ocasionalmente a partir de 1991, quando ele passou a usá-la para exposições e desfiles
Flickr/Niklas Morberg/Creative Commons
Foi nesse imóvel que Pierre Cardin também exibiu parte de sua coleção de móveis dos anos 1960 e 1970, além de criar peças icônicas como o Robes bulles (vestido bolha), lançado em 1958 — símbolo de sua fase futurista e inspirada na era espacial, a vestimenta integrou suas coleções do final dos anos 1950 até a década de 1960.
O design de interiores de Pierre Cardin
A incursão de Pierre Cardin em outras áreas surgiu a partir de um convite e foi um movimento natural para o estilista. “Lembro que Pierre me disse que, um dia, foi convidado para desenhar móveis e outros produtos. Ele respondeu que criar fora da moda não seria absurdo, desde que seu estilo fosse reconhecível”, lembra Rodrigo Basilicati Cardin, sobrinho-neto de Pierre e atual presidente da Maison Cardin.
Cardin produziu diversas peças, sempre com características comuns, mas mantendo singularidade. Uma de suas primeiras criações, feita em sua oficina de móveis, foi uma mesa de escritório — no formato de paralelepípedo, ela tinha acabamento brilhante que imitava mármore em tons de marrom e cinza. Contava com uma faixa larga vermelha combinada a detalhes cromados mais finos, apoiada em uma esfera vermelha e uma pirâmide de metal cromado.
O aparador Head of the Moon é um dos destaques do mobiliário criado por Pierre Cardin, que, pelas suas formas, evidencia a influência futurista na vida do estilista
Pinterest/Nicolas Salloum/Reprodução
Geometria pura e equilíbrio instável resumem os trabalhos seguintes de Pierre Cardin, segundo Rodrigo. “Centenas de criações diferentes entre si, expressando sempre novos conceitos e intenções”, destaca ele.
Muitas peças são descritas como esculturas utilitárias, unindo estética futurista e funcionalidade. Cardin traduziu suas ideias da moda para materiais como madeira, metal e vidro. “A inspiração na natureza e nos estados de espírito humanos está sempre presente, mas traduzida em formas abstratas”, completa o sobrinho-neto.
Retrato de Pierre Cardin em fevereiro de 1976 no Espaço Pierre Cardin em Paris, na França. O local era um centro expositivo e cultural que foi fundado pelo estilista e designer
PICOT/Getty Images
A mesa de café dobrável Éventail (1984) reflete a habilidade de Cardin em unir forma e função. O aparador Head of the Moon (1978), em laca vermelha e preta, evidencia essa mesma característica, combinando cores marcantes e contrastantes.
“Há sempre uma certa doçura na combinação de formas, linhas e cores: qualquer agressividade é suavizada por um senso de compreensão, mergulhando até as formas mais ousadas na suavidade”, fala Rodrigo.
A arquitetura de Pierre Cardin
Além do mobiliário, Cardin explorou a arquitetura futurista. O mais emblemático é o Palais Lumière, projetado para a região de Marghera, perto de Veneza, na Itália. Com 250 metros de altura e 60 andares, seria uma “escultura habitável”, reunindo residências, escritórios, comércio e áreas de lazer. O palácio, desenvolvido com a ajuda de seu sobrinho-neto, foi planejado para ser ecológico, ergonomicamente sólido e autônomo.
Seis turbinas eólicas sob cada disco gerariam dois terços da energia necessária para o edifício. “Seus experimentos com habitats modulares mostram a crença na tecnologia como mediadora de novos modos e formas de viver”, afirma Marcelo, professor do Mackenzie.
O estilista e designer faleceu aos 98 anos, em 2020. Retrato oficial de Pierre Cardin, tirado por seu próprio fotógrafo, Claude Iverné
Claude Iverné/Elnour/Wikimedia Commons
A construção, no entanto, não foi realizada. Logo após o anúncio, surgiram questionamentos sobre sua viabilidade. A altura prevista ultrapassaria em 150 metros a torre da igreja de São Marcos, principal construção da histórica ilha italiana, o que poderia comprometer seu reconhecimento como Patrimônio da Humanidade pela Unesco.
O legado de Pierre Cardin
Marcelo ressalta que “vestir a casa, assim como se veste o corpo humano”, sempre foi a filosofia de Cardin, que faleceu aos 98 anos, em 2020. “Suas produções continuam a mostrar como a inventividade formal pode ressignificar práticas cotidianas”, comenta.
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“Embora Pierre Cardin não atuasse no contexto acadêmico ou científico atual, seu trabalho pode ser visto como um exemplo de pesquisa projetual por meio da prática criativa”, aponta Gustavo, da FAU-USP. Isso porque o franco-italiano incorporava em seus projetos não apenas estética, mas também suas perspectivas e formas de compreender o mundo.
A liberdade e a colaboração definem o legado do estilista, segundo seu sobrinho-neto. “No tempo que trabalhei com Pierre, entre 2000 e 2020, tive espaço para desenvolver seus conceitos, como a combinação de formas. Ele permitia transformá-las em curvas refinadas, mas livres, respeitando minha sensibilidade, que via como semelhante à sua”, relembra Rodrigo, que atualmente comanda a marca Maison Cardin.