Por que é tão difícil proteger e preservar o patrimônio arquitetônico brasileiro?

Uma ideia errada de progresso, pressão do setor imobiliário e falta de recursos: por que é tão difícil proteger patrimônios históricos no Brasil? Nem havíamos nos recuperado do incêndio de 2018 no Paço de São Cristóvão, que destruiu a maior parte do acervo com mais de 20 milhões de itens do Museu Nacional, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro, e fomos de novo assolados por mais uma grande perda da nossa riqueza arquitetônica e cultural. A Igreja e Convento de São Francisco, em Salvador, erguida entre os sécs. 17 e 18 e reconhecida como Patrimônio Mundial pela Unesco, foi notícia em todo o país em fevereiro deste ano, após o desabamento de seu teto matar uma turista e ferir outras cinco pessoas. As duas tragédias geram revolta e questionamentos: por que aconteceram? O que houve de errado? De quem é a responsabilidade? Fomos atrás de algumas respostas. No Brasil, quem se encarrega da preservação e promoção do patrimônio cultural é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura que realiza vistorias técnicas periódicas nos bens tombados (notificando o proprietário sobre eventuais riscos, para que tome as providências cabíveis) e desenvolve projetos de restauro, por meio de leis de incentivo ou parcerias com órgãos públicos e entidades privadas. Na prática, porém, o compromisso é compartilhado: os estados, as prefeituras e, mais diretamente, os proprietários dos imóveis tombados também são responsáveis por sua manutenção – o que costuma provocar certa confusão, já que essas instâncias muitas vezes não se articulam de maneira adequada.
TRAGÉDIA ANUNCIADA
No caso da “Igreja de Ouro” (cujos ornamentos são revestidos com o metal precioso), tombada pelo Iphan desde 1938, os problemas vinham de longa data. Segundo o frei Lorrane Clementino, vigário do convento, há 30 anos a igreja solicita ao órgão a realização de um projeto de reforma dos prédios. “Não somos técnicos e não podemos fazer nada além de pequenos reparos sem a aprovação do Iphan, com quem mantemos boa relação, mas lamentamos a lentidão nos processos e a burocracia”, desabafa. No final de 2023, o instituto chegou a contratar por licitação – no valor de 1,2 milhão de reais – o escritório de arquitetura e engenharia Solé Associados, de Porto Alegre, para desenvolver um plano completo de restauração do complexo. “Estávamos em fase avançada do projeto quando o acidente ocorreu e, agora, como o escopo mudou completamente, nem sei dizer se será possível manter o contrato”, diz a arquiteta Antonela Petrucci Solé, diretora-executiva da empresa, em compasso de espera por um retorno do Iphan – que, por ora, escalou outra companhia para obras emergenciais no valor de 1,3 milhão de reais. Em 3 de fevereiro, antevéspera do desabamento, a igreja alertou o Iphan sobre uma dilatação no forro do teto e pediu uma vistoria, agendada para o dia 6, data seguinte da tragédia. Resultado: patrimônio degradado sem previsão de reabertura e uma ferida que parece aumentar a cada dia, com outras seis igrejas e dois imóveis residenciais interditados na cidade por riscos estruturais (durante uma força-tarefa do Iphan com a Defesa Civil local, a Codesal, que dias depois do desastre vistoriou 114 imóveis tombados), além de 287 bens classificados pela Codesal como de risco alto ou muito alto de desabamento ou incêndio.
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Interior da Igreja de São Francisco, em Salvador, conhecida como Igreja de Ouro e classificada como uma das sete maravilhas de origem portuguesa no mundo, antes do desabamento do forro da nave, no início de fevereiro
Fran Parente
É um absurdo o Brasil ter deixado esse patrimônio tão importante à deriva por tanto tempo. Todos sabiam do perigo
ARQUEOLOGIA DO DESASTRE
No Rio de Janeiro, o Museu Nacional anseia reabrir as portas em 2026, mas isso depende da entrada de recursos financeiros. Lá, já duram mais de seis anos as obras de reconstrução após o incêndio provocado pelo superaquecimento em um ar-condicionado, por falta de manutenção e investimentos, segundo a Polícia Federal. “É um luto que não passa. Considero um absurdo o Brasil ter deixado esse patrimônio tão importante à deriva por tanto tempo. Todos sabiam do perigo”, diz o paleontólogo e diretor do museu Alexander Kellner, que assumiu o cargo ciente dos riscos seis meses antes do desastre. “Entrei gritando para a imprensa o que estava acontecendo e tentando levantar fundos para mudar esse cenário”, completa. Não deu tempo e a lição está custando muito mais do que quaisquer medidas de conservação: um orçamento que já chega a 517 milhões de reais (sem considerar as perdas do acervo), dos quais cerca de 67% foram captados até o mês passado. Nas palavras de Kellner, é difícil conseguir recursos no país porque as leis são pouco convidativas e não é praxe do empresariado fazer doações para a área cultural.
Vista interna da OCA (Pavilhão de Exposições Lucas Nogueira Garcez), no parque Ibirapuera, em São Paulo, projetada por Oscar Niemeyer – construída em 1954, foi restaurada em 2000 para seguir o padrão museológico contemporâneo, sob orientação de Paulo Mendes da Rocha, com projeto executivo do MMBB;
Leonardo Finotti
“A sociedade brasileira não valoriza nossa memória e não conhece nosso patrimônio, simples assim. O desdobramento disso é a falta de recursos para cuidar desse patrimônio”, afirma a arquiteta e urbanista Nadia Somekh, professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie e parte do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, do Iphan. Só na capital paulista são cerca de 4 mil imóveis tombados, destaca a profissional, que já presidiu o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp). “Há uma ideia de que o tombamento congela o imóvel. Mas é possível proteger a história, ter lucro fazendo uma intervenção contemporânea e continuar a desenvolver a cidade. Afinal, a memória é um ativo”, complementa. A questão, em sua visão, é que o mercado imobiliário prioriza os ganhos, não o direito à memória. “É o que chamo de urbanismo corporativo”, conclui. Para Rodrigo Luna, presidente do Secovi-SP, sindicato que representa as empresas do mercado imobiliário no estado, a realidade mostra que tombar nem sempre significa preservar. “Em termos econômicos, como a apropriação de um imóvel tombado é restringida, instaurou-se entre muitos proprietários a cultura do descaso em relação à preservação como forma de provocar, literalmente, o tombamento do imóvel”, relata.
Em primeiro plano, o Museu Punta della Dogana, em Veneza, resultado da restauração da antiga alfândega veneziana do séc. 17, conduzida por Tadao Ando e concluída em 2009
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Na contramão dessa (falta de) lógica, o arquiteto Felipe Hess é um entusiasta do patrimônio. A casa onde mora em São Paulo (que já estampou a capa da Casa Vogue) foi projetada por Rodolpho Ortenblad em 1957 e, embora não seja um imóvel tombado, Hess a reformou com todo o esmero para recuperar seus elementos originais e alterar pontualmente seu programa e planta. “Gosto muito da estética antiga, é algo que me atrai e que no escritório lido sempre com muito respeito. Hoje em dia, de modo geral, o ego dos arquitetos é muito mais forte do que a memória, o que é uma pena”, considera. “Sempre tivemos no Brasil uma ideia de progresso que nunca requalifica o que tem, prefere demolir para fazer o novo, mesmo perdendo uma paisagem arquitetônica histórica, ao contrário de Paris e outras cidades europeias que se atualizam sobre si mesmas”, argumenta a historiadora Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno, professora da Faculdade de Arquitetura da USP. Soma-se a isso a falta de políticas de incentivo à proteção do patrimônio. “Na Itália, o dono de um imóvel tombado recebe 80% de desconto no IPTU, e as crianças são ensinadas a valorizar o patrimônio. Aqui não acontece nada disso”, emenda. “Falta promover uma zeladoria compartilhada e fazer o mercado imobiliário entender que a história é um ótimo negócio”, defende.
Outra questão é a demora na aprovação dos projetos. O arquiteto Gabriel Kogan viveu esse drama quando idealizou, com Guilherme Pianca, o restaurante no térreo do prédio do IAB-SP, desenhado em 1946 por nomes como Rino Levi, Roberto Cerqueira César, Zenon Letufo e outros, e tombado nas instâncias municipal, estadual e federal. “Foi muito difícil porque não havia uma boa articulação entre os órgãos, as aprovações demoravam meses e toda a documentação foi feita por ofícios, sem diálogo direto com os técnicos”, conta Gabriel, fazendo a ressalva de que, apesar das dificuldades, existem projetos positivos nessa área. “A Oca do Oscar Niemeyer no Ibirapuera passou por uma restauração bem conduzida pelo Paulo Mendes da Rocha. Na Europa, são notórias obras como o novo Reichstag, o parlamento alemão em Berlim, assinado por Norman Foster, e o Museu Punta della Dogana, de Tadao Ando, em Veneza”, exemplifica.
Temos no Brasil uma ideia de progresso que nunca requalifica o que tem, prefere demolir para fazer o novo
Detalhe da fachada do novo parlamento alemão, o Reichstag, em Berlim, onde se veem diferentes camadas de tempo: a estrutura principal original, projetada por Paul Wallot e concluída em 1894, e a cúpula de vidro que fez parte da reforma realizada por Norman Foster, pouco mais de um século depois
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NOVOS HORIZONTES
O que fazer, então, para mudar a realidade brasileira? “Precisamos aumentar o quadro de técnicos do Iphan e melhorar os salários, já que são profissionais altamente qualificados e que há anos reivindicam um plano de carreira”, conta Márcia Chuva, professora do Programa de Mestrado Profissional em Patrimônio Cultural do Iphan e parte do Conselho Consultivo do instituto. Faz sentido: são apenas mil servidores para cuidar de quase 40 mil sítios arqueológicos, 1.202 bens tombados e 58 bens imateriais registrados. “Além disso, o patrimônio sofreu muito na gestão passada com nomeações políticas e ações de desmantelamento da cultura”, ressalta Beatriz. Atualmente, os ventos parecem estar mudando de direção. O novo PAC (Plano de Aceleração do Crescimento), por exemplo, prevê repasses ao Iphan que somam 771 milhões de reais até 2026 para 144 obras e 105 projetos de recuperação de bens protegidos em todo o país. “Temos de firmar um pacto nacional pelo patrimônio cultural brasileiro, pois sua preservação deve ser entendida como solução, não como um problema. É um pilar da nova economia que gera renda e oportunidades para as pessoas”, lembra o presidente do Iphan, Leandro Grass. Em resumo, é necessário retomar aquilo que dizia Mário de Andrade mais de um século atrás: defender o nosso patrimônio histórico e artístico é alfabetização.
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