Ugo di Pace reflete sobre arquitetura, arte e vida: “Mobiliar é dispor mobiliário. Decorar é outra coisa”

Aos 98 anos, o arquiteto e mestre da metamorfose Ugo di Pace mantém-se firme em suas convicções Ugo di Pace acompanha atentamente a edição e aguarda o lançamento de seu quinto livro, intitulado Ugo di Pace. Obra de Arte. Protagonista da Minha Vida e dos Meus Trabalhos. Trata-se de “um registro do meu percurso, mas também uma homenagem a pessoas com quem convivi e trabalhei ao longo da vida”, conta. Especialmente, aos amigos queridos que habitaram de São Paulo a Roma, como Fernando Medeiros e Pietro Maria Bardi, seus sócios em galerias de arte, e Gio Ponti; Germano Mariutti, seu parceiro por uma década em projetos arquitetônicos e de interiores; e a colecionadores, marchands, críticos e arquitetos, “sujeitos que foram importantes no âmbito das artes”, prossegue.
Esse personalíssimo arquiteto napolitano recebe a equipe da Casa Vogue animado na casa que tem seu forte acento autoral paulistano-chic. Em 2 mil m² de terreno plano, cercado por um paisagismo frondoso e sem uma configuração formal, nos lados badalados do Jardim Guedala, a grande construção neoclássica, hoje rodeada por panos de vidro generosos, já chegou a abrigar um convento. É lá que o anfitrião antenado e acompanhado pela família escreve sua obra e conversa por uma tarde inteira.
Entre fotos, histórias e risadas, Ugo procura na mente e consegue lembrar de fatos, nomes de pessoas e datas antigas com precisão que até Deus duvida. Ao mesmo tempo, quando algumas palavras em português lhe faltam, procura encontrá-las rapidamente no seu idioma pátrio – e, se necessário, para disfarçar, recorre até a criativas invenções linguísticas que sabe praticar com esperta maestria.
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Esse é o Ugo verdadeiro, um conquistador eterno na vida dedicada ao trabalho, aos amores e à arte. Como quem se preparou para uma prova, versa sem pestanejar sobre os temas do livro que lhe são propostos, e que se percebe terem sido de sua real autoria, também pensados, estudados e analisados a vida toda, para esse tomo derradeiro em sua carreira (será?). Flanando sobre o novo título, sua vida e obra, o também colecionador – que recompra o que um dia vendeu – conversa sem se cansar por horas e enfrenta prontamente qualquer pergunta, desde as mais corriqueiras até as que poderiam incomodá-lo, mas que converte em boas gargalhadas. A seguir, confira os melhores momentos dessa entrevista.
Busto de Poseidon, deus grego dos mares e dos rios
André Klotz
Como, quando e onde você, filho de engenheiro, irmão de arquitetos e formado em Belas Artes na Itália, começou a carreira?
A primeira casa que fiz [ao todo foram mais de 600, entre São Paulo, Miami, Nova York, Paris e Istambul] foi nos anos 1950, no Pacaembu. Eu tinha 20 e poucos anos e já fazia parceria com Germano Mariutti, que conheci ainda escultor, logo que cheguei ao Brasil.
O que mais caracteriza a sua arquitetura de interiores?
O fato de ser tudo aberto. Gosto da integração dos ambientes. Uma das peculiaridades dos meus projetos é ter sempre espaços livres – as minhas casas não têm portas. Por exemplo, aqui neste andar mesmo, a única porta existente é a da cozinha.
Detalhe de sua bengala de marfim, datada do séc. 18
André Klotz
Nota-se também que adora um arco na sua arquitetura. Seria uma influência romana?
Não inventei o arco, que conheci em Nápoles. Milão também tem muitos arcos históricos – os vi desde que visitei Gio Ponti. Minha inspiração vem totalmente da Itália, mas o Brasil está a todo tempo dentro de minhas obras. Assim, criei o meu estilo. Até porque não saberia fazer outra coisa.
Mobiliar é simplesmente dispor mobiliário. Decorar é outra coisa. A arte é a protagonista dos meus projetos
Na arte, protagonista do seu livro, quem se destaca no cenário brasileiro?
Sem dúvida, meu amigo íntimo e grande artista Wesley Duke Lee, porque ele não tem nada de óbvio em sua obra, e Tarsila do Amaral, um “Picasso brasileiro”.
Ugo contempla sua amada coleção de arte – na parede, a tela maior é de Giuseppe Casciaro
André Klotz
E na arquitetura, quem é o personagem principal?
A arte é a protagonista dos meus projetos. Se pudesse, prescindiria dos móveis e teria apenas obras de arte. Mas os móveis são necessários. Então, o que eu faço é transformar esses objetos em arte. Mobiliar é simplesmente dispor mobiliário. Decorar é outra coisa. O objeto da verdadeira arquitetura de interiores é a obra de arte. Se for de alta qualidade, ela não apenas fala por si, mas cria o espaço ao seu redor e o enriquece.
Em sete décadas de criação, o que mais mudou no seu olhar – e o que nunca mudou?
Mantive minha visão sobre arquitetura e sua relação com a obra de arte. Ela sempre foi o centro – da casa, do projeto, da minha vida – e não deve ficar somente em vitrines ou museus. Tem de estar perto. No cotidiano. No corredor, na sala de estar. O que mudou foi o mundo. Hoje se compra muito, seguem-se as tendências, mas eu continuo pensando como sempre pensei.
A escultura do jardim de Ugo, do séc. 19, posta-se entre tocheiros do séc. 17
André Klotz
O que o conceito de metamorfose representa na sua obra?
Aqui, por exemplo, tenho duas mesas laterais com tampos de vidro. Os pés são fragmentos do século 18 – e isso é o que chamo de metamorfose. Já os pés daquela mesa de jantar eram balaustradas da Estrada de Ferro Sorocabana. Isso é metamorfose. Como dizia o amigo Gio Ponti: “Quando uma coisa ter- mina, outra mais bonita começa”.
E como se dá, no seu trabalho, essa relação sempre tão forte na mistura do antigo e do novo?
Em um dos meus projetos coloquei um biombo Coromandel, também do século 18. Era um biombo de 12 folhas. Eu o dividi em duas partes de seis folhas cada. No meio, pus um espelho do Philippe Starck. Isso cria o ritmo. O contraste entre o antigo e o contemporâneo. É isso que faço.
Na arquitetura de interiores, o que você acha que faz falta hoje em dia?
Elegância, conhecimento, bossa. Na minha época, tinha muito mais gente com bossa. E com elegância, que deve ser um fato natural, espontâneo, uma atmosfera. Comparando com a moda: o que tem no seu guarda-roupa não é o mais importante, o que importa é como você usa a roupa.
Meu novo livro é um registro do meu percurso, mas também uma homenagem a pessoas com quem convivi e trabalhei
De pulseiras Georg Jensen, Ugo di Pace posa no escritório de sua casa
André Klotz
E como se define essa elegância?
Assisti recentemente, no canal Arte1, um programa com a arquiteta Patricia Anastassiadis. Que elegância! Enviei-lhe um elogio, e ela me respondeu por escrito: “Querido Ugo!”, e logo vi… Que educação, que graça, que trabalho mais bonito.
*Matéria originalmente publicada na edição de maio/2025 da Casa Vogue (CV 472), disponível em versão impressa, na nossa loja virtual e para assinantes no app Globo Mais
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